A opção pela criatividade

 

Ideias introdutórias: um anúncio e uma piada

 

Assistindo à televisão, atividade que consumiu grande parte do meu tempo em função da Copa do Mundo e do torneio de Wimbledon, deparei-me com o anúncio de uma novela que a Globo colocará no ar em breve e que associei de imediato a uma velha piada de professores.

Segundo a referida piada, um indivíduo muito rico, acometido de uma doença fatal, resolveu utilizar parte de sua fortuna para servir de cobaia a um tratamento experimental: ser congelado e mantido artificialmente vivo até que a cura de sua doença fosse descoberta. Muitas décadas depois, a cura foi descoberta e, de acordo com a sua vontade, ele foi descongelado e devolvido ao mundo real. O impacto, porém, foi aterrador. Afinal, o mundo a que ele foi reconduzido não guardava a menor semelhança com aquele ao qual ele estava acostumado. Os ambientes diferentes, os meios de transporte completamente desconhecidos e o ritmo alucinante dos acontecimentos muito mais intenso levaram-no ao desespero e fizeram com que passasse a refletir se, efetivamente, valeria a pena continuar vivendo em tais condições. Prestes a entrar numa profunda depressão, ele resolveu entrar em algum lugar para descansar e pôr as ideias em ordem. Por coincidência, ele estava em frente de uma escola e foi lá que ele entrou. O efeito foi fantástico, uma vez que ali ele encontrou, finalmente, alguma coisa que era igualzinha ao tempo em que ele fora congelado.

Embora a piada possa ser exagerada, não está, infelizmente, muito longe da realidade em diversos aspectos e lugares da nossa realidade educacional. Como é amplamente noticiado, o Brasil ostenta posições ridículas nos rankings internacionais de educação.

Em muitos casos, em vez de ser um local voltado à criatividade, à inovação e à produção de novos produtos e novos processos, o ambiente educacional é retrógrado e conservador, permanecendo na maior parte do tempo correndo atrás dos acontecimentos, num ciclo de reciclagem e aperfeiçoamento em que, não raras vezes, está atrás de muitas outras instituições.

Por que isso acontece? Que razões podem servir de explicação para tal descompasso?

É o que vou explorar na próxima seção.

 

Explorando possíveis razões do descompasso

 

Passei os últimos quarenta anos diretamente envolvido com a educação. Iniciei em 1978, ministrando cursos de extensão em formação política para estudantes universitários de todo o País e segui em algumas instituições universitárias, com grande destaque para a Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), à qual estive vinculado de 1981 a 2017, atuando não apenas em sua Faculdade de Economia, mas em diversos cursos de graduação e pós-graduação. Minha experiência e minhas observações, porém, não se resumem a esse universo, uma vez que tive oportunidade de ser convidado para ministrar cursos e palestras em diversas partes do Brasil e do mundo, atividade que foi estimulada por minha militância nas entidades representativas da categoria do economistas e em think tanks e centros de pesquisa como o Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, o Instituto Liberal e a Fundação Brasil Criativo.

Com esse vasto universo de observação, constatei uma série de problemas que podem ser apontados como responsáveis pelo menos em parte, para os péssimos resultados da educação no Brasil, em especial no que se refere à criatividade, ao empreendedorismo e à inovação.

Vou dividi-los em duas partes. A primeira refere-se a uma confusão ainda existente sobre o conceito e o aprendizado da criatividade e, por extensão, do empreendedorismo e da inovação. A segunda está relacionada à atuação dos professores.

A confusão a que me refiro no primeiro aspecto está associada à ideia, errônea, que a criatividade é um dom natural, com o qual alguns afortunados nascem e outros não.

Embora algumas pessoas, em função de sua espontaneidade e extroversão possam ter mais facilidade de demonstrar a sua criatividade, isso não quer dizer que as outras, mais tímidas ou introvertidas, não possuem o mesmo potencial.

Devo admitir que fui favorecido por uma iniciativa da FAAP, cuja diretoria, no início da década de 1990, percebendo o acirramento da competição também no ensino superior, soube antecipar-se à concorrência e passou a investir na capacidade de seus professores de darem boas aulas, enviando parte deles, por vários anos, a alguns dos mais importantes encontros internacionais de solução criativa de problemas e de ensino e aprendizagem acelerada. Graças a essa iniciativa – e a meu envolvimento pessoal por ter acreditado na mesma – participei de eventos interessantíssimos nos Estados Unidos, no Brasil, na Europa e na África do Sul, culminando com um mestrado em criatividade e inovação na Universidade Fernando Pessoa, em Portugal.

Num desses eventos, o tema geral era “Creativity by choice, not by chance” e enfatizava justamente o que a criatividade não é: dom natural, magia, mistério ou loucura.

A rigor, a criatividade, definida por Jo Yudess como “a capacidade de pensar em coisas novas e úteis”, constitui-se num campo do conhecimento como uma série de outros. Atualmente, pode-se afirmar que há muita pesquisa acumulada por meio de gerações sucessivas de estudos a seu respeito. Em minha dissertação de mestrado, identifiquei cinco gerações.

A primeira, voltada para o “pensamento criativo”, enfatizava o desenvolvimento de habilidades (anos 1950). Essa geração não conseguiu despertar o interesse da sociedade em geral para o tema da criatividade, razão pela qual os estudos e eventuais avanços ficaram restritos aos limites dos consultórios e das clínicas de psicólogos e neurocientistas que se debruçaram sobre ele. A noção de criatividade esteve nessa fase associada à capacidade de fazer algo diferente. Diversas definições surgiram, sendo a que mais me agrada a de Charles ‘Chic’ Thompson,  “a capacidade de olhar a mesma coisa que todos os outros, mas ver algo diferente nela” (1993, p. 24), uma adaptação de duas citações do ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 1937, Albert Szent-Györgyi[1].

A segunda, voltada para a “solução criativa de problemas”, dava ênfase à produtividade, alertando, assim, para um fato relevante para o mundo dos negócios: a criatividade pode se constituir numa importante ferramenta para a obtenção de vantagem competitiva. Para essa geração, a criatividade incorpora um fator fundamental para quem vive num ambiente competitivo, a agregação de valor. A liderança desta geração esteve concentrada em Buffalo, no norte do estado de Nova York. Lá, no campus da State University of New York, foi criado um centro de pesquisas sobre criatividade e inovação. Isso, por sua vez, facilitou o surgimento de uma espécie de cluster, reunindo diversos centros de pesquisa e divulgação da criatividade, sendo a Creative Education Foundation uma das mais conhecidas.

Já a terceira geração dá ênfase à ideia da autotransformação, acreditando que uma pessoa não poderá desenvolver a criatividade, mudando a maneira de ver o mundo e de fazer as coisas, se antes ela não se transformar por dentro. Para tanto, é necessário investir primeiro no autoconhecimento; depois, uma vez estando a pessoa convencida da necessidade de desenvolver a criatividade, na autotransformação. A Universidade de Santiago de Compostela, tendo à frente o Prof. David de Prado, foi uma das pioneiras dessa geração com seus programas de especialização e de pós-graduação em Creatividad Aplicada Total. Atualmente, tais atividades prosseguem por meio do IACAT – Instituto Avanzado de Creatividad Aplicada Total (http://www.iacat.com), agora vinculado à Universidade Fernando Pessoa.

Passada a fase da disseminação da importância da criatividade, ocorrida nas duas últimas décadas do século XX, teve início a quarta geração. Como diz Saturnino de la Torre[2], a respeito das fases iniciais:

Durante mais de cem anos, a imaginação primeiro e a criatividade depois foram os termos mais utilizados para explicar o fenômeno das criações tanto artísticas e literárias como científica e tecnológica. A criatividade foi considerada durante décadas como uma atitude ou qualidade humana pessoal e intransferível para gerar ideias e comunicá-las, para resolver problemas, sugerir alternativas ou simplesmente ir mais além do que se havia aprendido. Os estudos e teorias psicológicas contribuíram de alguma maneira para aprofundar este fenômeno complexo.

A quarta etapa iniciada na transição do século XX para o XXI, no entanto, é bem diferente a aponta para novos desafios. Um século depois de seu nascimento, a criatividade se reveste de um caráter mais amplo, assumindo uma preocupação muito mais acentuada. É como se a passagem para um novo século significasse a celebração da maioridade da criatividade, que sai da vida familiar acadêmica para abrir-se à vida social, como em outro tempo o fizeram a educação, a saúde ou a defesa do meio ambiente, como conclui de la Torre: 

A criatividade como valor social virá marcada por um novo espírito, esta vez envolto em problemas de convivência entre as diferentes civilizações e culturas que conformam a humanidade. É preciso para isso um tipo de criatividade menos academicista e mais estratégica e atitudinal. Uma criatividade comprometida com a busca de soluções a problemas sociais, aberta à vida, à juventude, ao cotidiano. Uma criatividade que se converte em “espírito criativo”, em termos de Goleman, Kaufman e Ray. A criatividade é um fato social e não só psicológico, afirmam esses autores.

Por fim, a quinta e última etapa, que se desenvolveu no início deste novo século, é representada pela economia criativa e sua origem reside na habilidade, criatividade e talentos individuais que, empregados de forma estratégica, têm potencial para a criação de renda e empregos por meio da geração e exploração da propriedade intelectual (PI). Tendo como principais expoentes Richard Florida e John Howkins e a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) como uma de suas mais importantes divulgadoras, a economia criativa se caracteriza, a exemplo da etapa anterior, por uma visão mais abrangente, relacionada à produção de políticas públicas e ações de interesse social, capazes de gerar um significativo volume de empregos de qualidade.

Verifica-se, portanto, uma importante mudança: até a terceira geração, os estudos e pesquisas sobre criatividade estavam mais voltados para a dimensão individual; a quarta e a quinta gerações, por sua vez, revelam uma preocupação mais ampla, marcada pela busca de soluções para questões sociais e para a formulação de políticas públicas.

O outro aspecto que gostaria de explorar na busca de razões do descompasso da nossa educação está relacionado ao comportamento e à forma de atuação de muitos professores. Em parte, seguramente, pelo fato de também não terem sido esclarecidos a respeito da confusão citada no primeiro aspecto e, em consequência, de não terem recebido qualquer treinamento envolvendo a criatividade, são levados a acreditar que a criatividade é um dom natural, não precisando, portanto, ser objeto de ensinamento.

 

Outros fatores, no entanto, podem ser acrescentados a isso, agravando o problema.

 

Um deles refere-se à inercia. Como as condições, muitas vezes, estão longe de serem as ideais no sentido de estimular a pesquisa e a busca de novas formas de ensinar, muitos professores optam por permanecer utilizando as mesmas técnicas e metodologias por anos e anos, deixando de incorporar recursos que tornariam suas aulas muito mais dinâmicas e estimulantes.

Evidentemente, tal comportamento desagrada os estudantes, que são obrigados a deixar de lado um mundo muito mais atraente, recheado de novidades fora da sala de aula, para conviver com aulas monótonas e desinteressantes. Essa realidade, que é mais acentuada nos níveis mais elevados do que nos níveis fundamentais, em que a curiosidade infantil desempenha um papel essencial, é frequentemente agravada pelo péssimo exemplo de professores que, talvez impressionados com seu próprio conhecimento, insistem em continuar utilizando estratégias que fazem dos estudantes agentes passivos do processo ensino/aprendizagem.

Exemplos desse estilo chamado inadequadamente de tradicional ainda são predominantes entre escolas e faculdades espalhadas pelo Brasil. Por aula tradicional, refiro-me àquelas aulas em que o professor passa o tempo todo – ou quase todo – expondo oralmente a matéria, cabendo ao aluno um papel passivo na relação entre ensino e aprendizagem. Apesar das evidências apontadas em diversas pesquisas a respeito de estilos de aprendizagem mostrando as limitações do aprendizado auditivo, há ainda um volume significativo de professores que insistem em utilizar em suas aulas esse estilo baseado exclusivamente na oratória, no qual o professor passa a maior parte do tempo falando e o aluno, passivamente, escutando. Ou fingindo escutar, o que é pior. O professor Henrique Vailati Neto, atual diretor do Colégio FAAP, deu a esse estilo de aula o sugestivo nome de “modelo arrotativo-regurgitatório”, ilustrado adequadamente na figura abaixo, reproduzida do delicioso livro de Roger von Oech Um ‘TOC’ na cuca.

“Modelo arrotativo-regurgitatório”, em que o professor despeja informações no cérebro do aluno

 

Outro fator que contribui para aulas desinteressantes é que muitas instituições de ensino mantêm seus professores presos a determinadas amarras representadas por um sem número de regras e regulamentos que lhes tiram qualquer possibilidade de experimentar novas estratégias de ensino.

Contrariando a opinião de muita gente, que credita ao desinteresse dos estudantes, os maus resultados da nossa educação, afirmo, com enorme convicção, que desde que desafiados e encorajados, por meio de estratégias que os coloquem como protagonistas do processo de aprendizagem, eles respondem positivamente, chegando, muitas vezes, a superar a expectativa de seus professores.

Em minha experiência recente, na direção da Faculdade de Economia da FAAP, pude propiciar oportunidades dessa natureza, abrindo aos estudantes oportunidades de empreender na educação, organizando e promovendo simulações de organismos internacionais ou participando de missões estudantis. Os resultados, em todas elas, foram espetaculares.

Como afirmou Jo Yudess, “todas as pessoas são criativas de seu próprio jeito e em seu próprio nível” e, sendo assim, podem desenvolver esse potencial fugindo da rotina de que muitas vezes nos tornamos escravos e pensando em formas diferentes de realizar as atividades da vida pessoal e profissional.

Claro que isso implica, muitas vezes, em assumir riscos, outra coisa que muita gente tem dificuldade de fazer. Num ambiente conservador como normalmente é o das instituições de ensino, isso pode exigir coragem dos professores, pois terão de sair de sua zona de conforto, adotando novas práticas e estratégias, sem saber qual será a reação de seus alunos.

Quanto a isso, a única coisa que posso dizer com base na minha própria experiência é: vale a pena!!!

 

Criatividade, empreendedorismo e inovação

 

Bill Shephard, por muitos anos diretor da Creative Education Foundation, de Buffalo, NY, repetia sempre em suas intervenções: “existe criatividade sem inovação, mas não existe inovação sem criatividade”.

Efetivamente, num mundo altamente competitivo, em que a capacidade de surpreender e de se antecipar à concorrência é fator essencial para o sucesso, o ensino da criatividade torna-se ainda mais importante.

Duas de suas decorrências são o empreendedorismo e a inovação.

Quanto ao empreendedorismo, ainda que surjam algumas experiências interessantes, o fato é que a maior parte das instituições de ensino continua adotando um modelo pedagógico voltado à formação de futuros trabalhadores, excelentes, muitas vezes, para reproduzir e seguir ordens de alguém, e não para serem empreendedores, ou seja, para serem donos de seus próprios destinos.

Quanto à transformação da criatividade em inovação, embora existam diversos especialistas e muitas teorias, acredito que a figura abaixo, inspirada nas ideias de Michael Porter e no livro O dilema da inovação de Clayton Christensen, sintetiza bem a questão. Apesar das enormes possibilidades de variação, uma ideia criativa acabará se transformando num novo produto, novo processo ou novo ambiente de duas formas: por via de uma ruptura, alterando os paradigmas existentes, ou por via incremental, através do aperfeiçoamento contínuo, chamado pelos japoneses de kaizen.

Possibilidades de utilização de uma ideia criativa em sua transformação num produto ou serviço

 

Concluindo com um brado pela criatividade

 

No Manifesto comunista, um dos mais bem sucedidos panfletos políticos de todos os tempos, Karl Marx e Friedrich Engels escreveram: “Os proletários não têm nada a perder, a não ser seus grilhões. E têm tudo a ganhar. Trabalhadores de todos os países, uni-vos!”

Numa livre adaptação, embora reconhecendo que isso, por si só, não resolverá os problemas da nossa educação, ouso dizer: “Os professores não têm nada a perder a não ser seus grilhões. E têm tudo a ganhar. Professores de todo o mundo, libertai-vos, deixando fluir sua criatividade e estimulado o poder criativo de seus alunos!”

 

Referências bibliográficas e webgráficas

CHRISTENSEN, Clayton M. O dilema da inovação. São Paulo, Makron Books, 2001.

MACHADO, Luiz Alberto. A criatividade, disciplina e instrumento chave na formação universitária: o caso de 20 anos criativos na FAAP. Dissertação de mestrado. Universidade Fernando Pessoa, Portugal, 2012.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Tradução de Maria Lucia Como. 15ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

MORAES, Maria Cândida e TORRE, Saturnino de la. Sentipensar: fundamentos e estratégias para reencantar a educação. Petrópolis, RJ, Vozes, 2004.

Oech, Roger von. Um “TOC” na cuca. Tradução de Virgílio Freire. Ilustrações de Claudia Scatamacchia. São Paulo: Livraria Cultura Editora, 1993.

Osborn, Alex F. O poder criador da mente – Princípios e processos do pensamento criador e do “brainstorming”. São Paulo, IBRASA, 1972.

PRADO, David de. Los valores universales de la creatividad. Construyendo valores sociopersonales con imaginación. Recrearte nº 7, julho de 2007. Disponível em http://www.iacat.com/Revista/recrearte/recrearte07/Seccion1/1.%20LOS%20VALORES%20UNIVERSALES%20DE%20CREATIVIDAD.pdf.

 

[1] Albert Szent-György, é citado no livro The Scientist Speculates, de Irving Good (1962), como autor de duas citações. A primeira, sobre descoberta, é  “Discovery consists of seeing what everybody has seen and thinking what nobody has thought”; a segunda,   sobre pesquisa, é “Research is to see what everybody else has seen, and to think what nobody else has thought”.

[2] “Criatividade, um bem social”, texto mimeografado distribuído por ocasião da palestra do autor, proferida na FAAP, no dia 6 de outubro de 2004.