Uma nova economia para depois da crise
Eiiti Sato[1]
A quarentena em escala mundial vai trazer uma nova economia. Toda grande crise provoca mudanças na economia em razão das inevitáveis pressões que recaem sobre todo o sistema econômico. Um dos efeitos imediatos será o colapso de empresas ineficientes e dependentes crônicos de subsídios. Como a crise é global, o comércio exterior dos países se vê pressionado pela recessão que incide principalmente sobre os bens de elasticidade elevada. Por outro lado, em virtude de o comércio se desenvolver hoje em larga medida por meio de cadeias globais de valor (CGV) é difícil identificar os efeitos sobre o comércio, mas parece claro que várias dessas CGV serão revisadas.
A indústria nacional
De certo modo, a crise pressiona no sentido de se estender o conceito de “segurança alimentar” e “segurança energética” para o de “segurança industrial”, ao menos para os produtos mais essenciais para a nação. Assim, de certo modo, as forças que já moviam a ordem internacional no sentido do reavivamento do nacionalismo tiveram no novo coronavírus um aliado inesperado. Após a guerra da independência nos EUA, o ponto de vista de Alexander Hamilton em favor de uma política de industrialização acabou prevalecendo sobre a opinião de notáveis senhores de terras como Thomas Jefferson, e até mesmo sobre o pensamento econômico da época – o dos fisiocratas – que entendia que “toda riqueza vem da terra”. Na realidade, o próprio George Washington era fazendeiro e prezava muito a forma de vida baseada na terra. Tudo indica que um dos argumentos principais para que prevalecesse o ponto de vista de Hamilton teria sido o argumento da segurança. Os EUA não poderiam depender da importação de armas, especialmente tendo em vista que o provável inimigo mais imediato em um campo de batalha seria a Inglaterra, a nação mais industrializada da época. Nos dias de hoje, a crise do coronavírus expôs dificuldades na produção de bens importantes – essenciais até – como respiradouros e equipamentos para UTI não em virtude de falta de matérias primas, mas de bens intermediários de baixa tecnologia. Além disso, como explicar que uma economia como a brasileira não tenha capacidade de produzir máscaras cirúrgicas para atender a demanda nacional, por mais que seja uma demanda atípica?
Crise e endividamento
O desdobramento que se afigura mais preocupante no caso do Brasil é a perspectiva de endividamento. A paralisação da economia gera uma inevitável pressão sobre setores da produção mais vulneráveis, com menor capacidade de resistir à suspensão inesperada da atividade econômica. No plano individual, à exceção do serviço público, boa parte dos empregos pode ver-se ameaçada. Assim, mesmo diante da queda substancial da arrecadação fiscal, além dos gastos para conter a pandemia, o presidente, o Congresso e os governos estaduais, cada qual a seu modo, têm proposto e aprovado mecanismos para dar suporte a empresas e a grupos sociais de todo tipo, considerados mais vulneráveis e suscetíveis de se verem em dificuldade diante da quarentena. Em outras palavras, a crise trará um substancial aumento no déficit público, especialmente levando em conta que, em nenhuma dessas instâncias, sequer foram mencionadas possíveis fontes de recursos, mas apenas mecanismos jurídicos que permitem fugir da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Nesse quadro, obviamente, o resultado inevitável será o endividamento. Uma verdadeira herança maldita para os próximos governos. Assim como para indivíduos e empresas, para qualquer sociedade, o endividamento é um “vírus” terrível porque compromete o futuro. Os indivíduos ou as sociedades podem endividar-se por muitas razões, mas quaisquer que sejam essas razões, os efeitos são os mesmos do ponto de vista financeiro. Ou seja, moralmente, as razões do endividamento podem ser muito diferentes, mas o resultado inevitável são compromissos ou títulos a pagar no futuro. Assim, seja na administração pública ou na vida privada, os responsáveis deveriam preocupar-se tanto com eventuais males que precisam combater quanto com formas de se evitar ao máximo o endividamento.
O Brasil e o endividamento
A dificuldade é que na esfera pública, diante de uma crise, o endividamento é o caminho mais simples, menos trabalhoso e, principalmente, politicamente menos oneroso no curto prazo. Especialmente em um país como o Brasil, onde a crença generalizada é a de que os recursos públicos saem de uma “cartola mágica” que depende apenas de visões ideológicas sobre a ordem social e sobre a nação. Foi o que ocorreu na década de 1970, diante da crise do petróleo. Enquanto as principais economias do mundo praticavam severas políticas de contenção de consumo e de gastos, o Brasil preferiu (como outros países latino-americanos) o endividamento e, depois, veio a consequência inevitável: a “década perdida”.
Nesse aspecto, as perspectivas para a presente crise não são nada animadoras para o Brasil. Talvez não seja possível evitar o endividamento, mas há muita “gordura” que poderia ser queimada antes do endividamento. Apenas para citar um exemplo, já que o espírito patriótico e de solidariedade nacional de nossos políticos se revela tão elevado em seus pronunciamentos, por que não oferecer seus salários e suas verbas de gabinete (ou ao menos parte deles) como contribuição ao “esforço de guerra” da nação? Na realidade, como estão de quarentena e sem necessidade de realizar considerável parte das despesas regulares, por que não transferir parte dos vencimentos para o combate à disseminação da pandemia? O mesmo não poderia ser dito do Judiciário e até mesmo do funcionalismo público em geral? Na realidade, parece uma flagrante injustiça que, diante da crise, apenas o trabalhador privado ou o pequeno comerciante vejam sua renda cair e seus empregos ameaçados. Para o servidor público, vencimentos diretos e indiretos e auxílios variados continuam intocados sob a justificativa de que são direitos concedidos pela Justiça. Para uma mobilização de toda a classe política nesse sentido, no entanto, precisaria de um líder, um líder autêntico.
[1] Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
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