Trajetória geo-sociológica do coronavírus

“A taxa de contaminação pelo novo coronavírus no Brasil é de 2,8 – a maior entre 48 países analisados pelo Imperial College de Londres. Isso significa que cada pessoa com a Covid-19 no país infecta quase outras três – ou que cada 10 pessoas com o vírus infectam outras 28. O país com a menor taxa de transmissão é a Grécia, com 0,44.”

Relatório do Imperial College[1]

Ainda que a evolução do coronavírus não ocorra de forma padronizada, apresentando peculiaridades em cada município, estado ou região, um rápido exame da trajetória do Covid-19 na cidade de São Paulo permite, sem qualquer base científica, identificar duas tendências nítidas: uma de caráter geográfico; outra de caráter sociológico. Ambas, no entanto, apresentam elevado grau de complementariedade.

Sem rigor científico, faço questão de frisar, eu diria que o aumento acentuado de casos registrados de Covid-19 verificados nas últimas semanas nos bairros da periferia da capital paulista permite estabelecer uma correlação geográfica bastante razoável, uma vez que o coronavírus instalou-se no País afetando primeiro a alta classe média de São Paulo, que faz viagens ao exterior ou tem contato com quem viaja. Não é por outra razão que hospitais particulares dos bairros das Zonas Oeste e Sul, habitados por parcelas consideráveis por pessoas das classes A e B, tenham recebido grande número de pacientes até o final de março. A partir de abril, a ocupação desses hospitais acusou relativo declínio, em comparação com a rápida ocupação, que chegou à saturação em alguns casos, dos hospitais das outras regiões da capital, nos quais é elevado o número de pessoas menos favorecidas, que vivem em condições inadequadas nas favelas e comunidades.

Assim, é natural que a doença se espalhe enquanto desce também na pirâmide social.

A taxa de contaminação tende a ser maior nessas áreas pela dificuldade de isolamento social (moradias precárias), porque muitas pessoas ainda estão trabalhando normalmente (como afirmou o filósofo Felipe Pondé, “a pobreza no Brasil faz da quarentena uma tendência de comportamento dos ricos e famosos”), e também por desinformação, que levou ao afrouxamento voluntário da quarentena para menos de 50%, considerada o mínimo aceitável. Em suma, quanto mais afeta os pobres mais o vírus se espalha, e quanto mais se espalha mais afeta os mais pobres. Apenas a título de exemplo, na última semana de abril, em Capão Redondo, no extremo sul da cidade, os casos diagnosticados aumentaram 113%, enquanto a média da cidade foi de menos de 40%.

Trata-se de mais uma evidência da dimensão nefasta da desigualdade brasileira, reafirmada recentemente no novo livro de Thomas Piketty, Capital e ideologia (a ser lançado brevemente no Brasil), no qual ele afirma que “a desigualdade não é econômica ou tecnológica, é ideológica e política”.

Referências bibliográficas e webgráficas

IMPERIAL College. Previsões de curto prazo das mortes por COVID-19 em vários países. Disponível em https://mrc-ide.github.io/covid19-short-term-forecasts/index.html.

_______________ Taxa de contágio do novo coronavírus no Brasil é de 2,8, a maior entre 48 países, aponta levantamento britânico.  Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/30/taxa-de-contagio-do-novo-coronavirus-no-brasil-e-de-28-a-maior-entre-48-paises-aponta-levantamento-britanico.ghtml.

PIKETTY, Thomas. Capital e ideología. Traducción de Daniel Fuentes. Barcelona: Deusto, 2019.

PONDÉ, Luiz Felipe. Pobreza no Brasil faz da quarentena tendência de ricos e famosos.  Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/luiz-felipe-ponde/peste-no-insta-pobreza-no-brasil-faz-da-quarentena-tendencia-de-ricos-e-famosos/.

RODRIGUES, Rodrigo;  BORGES, Beatriz. Casos de coronavírus avançam na periferia de SP; Capão Redondo tem aumento de 113% em uma semana. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/28/casos-de-coronavirus-avancam-na-periferia-de-sp-capao-redondo-tem-aumento-de-113percent-em-uma-semana.ghtml.

 

[1] Meu agradecimento ao coordenador de projetos do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, João Tavares, pelo envio dos relatórios do Imperial College e pela troca de ideias que me permitiram redigir este artigo.