O pêndulo e as conclusões precipitadas
“O capitalismo não é um bom sistema, mas ninguém inventou coisa melhor.”
Lech Walesa
Em tempos de pandemia, como não poderia deixar de ser, é sobre ela e seus efeitos que recai o foco da maior parte das notícias nas diferentes mídias, incluindo as sociais, sobre as quais existe menor controle quanto ao rigor e à veracidade.
Dentre as matérias veiculadas, encontra-se de tudo, desde matérias que buscam comparações com crises passadas, passando por notícias baseadas na divulgação diária de novos dados, e chegando a especulações a respeito do que acontecerá no futuro, variando apenas o prazo da análise: curto, médio ou longo.
Meu artigo tem por foco este terceiro tipo de matérias, ou seja, das que especulam sobre o que acontecerá pós-pandemia.
Tenho me deparado com um volume muito grande de afirmações peremptórias do tipo: “o mundo jamais será o mesmo”, “o modelo capitalista caminha rapidamente para o seu final”, “o liberalismo morreu” e outras do mesmo gênero. Na esmagadora maioria delas, tais afirmações vêm acompanhadas da defesa de uma ativa intervenção governamental, cabendo ao Estado assumir papel de protagonista que, para muitos desses analistas, ele jamais deveria ter deixado de exercer.
Puxando a sardinha para o meu lado de estudioso da história econômica[1], gostaria de fazer algumas ponderações tendo por pano de fundo o papel do Estado na economia. A primeira constatação que salta aos olhos é que a história registra uma espécie de movimento pendular, em que o pêndulo ora sinaliza para um maior grau de intervenção, ora para um nível mais reduzido de intervenção.
Nesse sentido, se mergulharmos nos primórdios da teorização econômica, por ocasião da transição da era medieval para a Idade Moderna (meados do século XV/século XVI), constataremos que a Escola Mercantilista defendeu uma forte intervenção governamental na economia, única forma de levar a cabo os objetivos máximos de sua política econômica, entre os quais despontava o acúmulo de metais preciosos por meio de uma balança comercial superavitária. Elevada regulamentação e forte protecionismo foram duas das características mais marcantes das políticas econômicas mercantilistas que predominaram nas metrópoles europeias por mais de dois séculos.
Em oposição a esse estado de coisas, a Europa assistiu na primeira metade do século XVIII ao aparecimento de um movimento filosófico-cultural, o Iluminismo, que pregava três grandes ideias: a defesa da liberdade em todas as suas dimensões (liberalismo), a afirmação dos direitos individuais (individualismo), e a supremacia da razão (racionalismo). Como subproduto desse movimento filosófico-cultural, surgiram, na segunda metade do século XVIII, duas escolas de pensamento econômico que tiveram grande importância para a consolidação do pensamento econômico liberal. A primeira foi a Escola Fisiocrata, que teve reduzida influência no tempo e no espaço, já que suas ideias jamais ultrapassaram os limites da França e, assim mesmo, por não mais de duas décadas, como bem assinalou Joseph Schumpeter: “A fisiocracia não existia em 1750. Paris inteira, além de Versalhes, se ocupava dela entre 1760 e 1770. Praticamente todo mundo (excluindo economistas declarados) já a tinha esquecido por volta de 1780”. A segunda, de influência bem mais duradoura, foi a Escola Clássica, que teve nos escoceses David Hume e Adam Smith seus primeiros grandes expoentes, seguidos depois por Thomas Malthus, David Ricardo e Jean Baptiste Say. Embora discordassem em aspectos pontuais, tinham em comum a crença na supremacia de uma sociedade organizada com base na propriedade privada dos meios de produção, no exercício da livre iniciativa empresarial e na busca do lucro, cabendo ao Estado um papel apenas secundário.
As ideias liberais triunfaram e deram origem a políticas econômicas muito diferentes daquelas que haviam prevalecido durante a vigência da influência mercantilista. Sua base de sustentação era a ideia de que as forças de oferta e de procura se contrapunham de tal forma que a economia tendia naturalmente ao equilíbrio sem necessidade de intervenção governamental. Reforçando essa ideia-chave, havia a crença (maior em Smith e Say, menor em Ricardo e Malthus) na existência de certa harmonia de interesses, segundo a qual cada indivíduo, na busca de seus próprios interesses, acabava por contribuir – intencionalmente ou não – para a satisfação dos interesses de todos os outros membros da comunidade. Essa ideia é um dos sustentáculos da defesa da divisão do trabalho feita por Adam Smith nos capítulos iniciais de sua obra magna A riqueza das nações, publicada em 1776, e deu origem a uma das mais reproduzidas citações da economia:
Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles.
Ao contrário, porém, do que imaginara Adam Smith, os ganhos de produtividade e o aumento considerável da produção de bens e serviços decorrentes da divisão do trabalho e da Revolução Industrial não conduziram ao paraíso, uma vez que, se por um lado, alguns enriqueceram e passaram a viver num nível de conforto jamais visto, muitos permaneceram com um padrão de vida excessivamente modesto, tendo que se submeter a jornadas enormes de trabalho, em péssimas condições, para receber um salário que não raras vezes sequer cobria as despesas de subsistência de suas famílias.
Foi para se opor a isso que Karl Marx, dando sequência a uma série de ideias dos chamados socialistas utópicos, produziu uma vasta obra, na qual se destacam O manifesto comunista, em parceria com Friedrich Engels e publicado em 1848, e O capital, cujo primeiro volume foi publicado em 1867, fazendo uma crítica contundente ao modo de produção capitalista e lançando as bases de uma sociedade mais justa, na qual a propriedade privada dos meios de produção daria lugar à propriedade coletiva, e o Estado, por meio de órgãos centrais de planificação criados com esse objetivo específico, decidiria o que, quanto, como e para quem produzir.
Numa espécie de contrarreação de caráter liberal às ideias socialistas, surgiram, no início da década de 1870, obras em defesa dos princípios liberais escritas por autores de diferentes países que não tinham conhecimento do trabalho uns dos outros. E assim, William Stanley Jevons, na Inglaterra, Carl Menger, na Áustria, e Leon Walras, na Suíça, dão origem à chamada revolução marginalista, complementada alguns anos depois pela contribuição de Alfred Marshall, maior expoente da Escola Neoclássica.
Graças a esse reforço, as políticas econômicas liberais seguiram dominando o cenário de forma absoluta até o advento da revolução russa em 1917 e da Grande Depressão iniciada com o crack da Bolsa de Nova York em 1929. A partir desses dois acontecimentos, políticas econômicas favoráveis a uma maior intervenção governamental na economia passaram a predominar. Nos países influenciados pela Rússia (e depois pela União Soviética) foram adotadas políticas econômicas com plena intervenção governamental, enquanto nos países ocidentais desenvolvidos prevaleciam políticas econômicas de inspiração keynesiana, que defendiam uma intervenção parcial do Estado, num meio termo entre a reduzida intervenção preconizada pelos liberais e a plena intervenção defendida pelos socialistas.
O que se observou no período que se seguiu ao fim da Segunda Guerra foi um amplo predomínio das políticas econômicas intervencionistas nas décadas de 1950, 1960 e 1970, a ponto de Eduardo Giannetti referir-se a esse período como “grande consenso keynesiano”, cujos pilares básicos, todos favoráveis a uma ativa intervenção governamental, podem ser assim sintetizados:
(i) a defesa da economia mista, com forte participação de empresas estatais na oferta de bens e serviços e a crescente regulamentação das atividades do setor privado por meio da intervenção governamental nos diversos mercados particulares da economia; (ii) a montagem e ampliação do Estado do Bem-Estar, garantindo transferências de renda extramercado para grupos específicos da sociedade (idosos, inválidos, crianças, pobres, desempregados etc.) e buscando promover alguma espécie de justiça distributiva; e (iii) uma política macroeconômica ativa de manipulação da demanda agregada, inspirada na teoria keynesiana e voltada acima de tudo para a manutenção do pleno emprego no curto prazo, mesmo que ao custo de alguma inflação.
Na década de 1980, porém, teve início com os governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher na Inglaterra o refortalecimento das políticas de inspiração liberal. Rotuladas de neoliberais, tinham na privatização e na desregulamentação suas principais bandeiras. Com o esfacelamento do império soviético e a queda do Muro de Berlim, as políticas econômicas de inspiração liberal passaram a ser adotadas também em países que por muitas décadas haviam vivido sob a influência socialista, possibilitando o aparecimento de análises que apontavam para essa supremacia da democracia no plano político e da economia de mercado no plano econômico como “o fim da história”, cujo maior exemplo é o do nipo-americano Francis Fukuyama.
A severa crise econômica que se abateu sobre todo o mundo em 2007/2008, que teve origem no mercado hipotecário dos Estados Unidos, serviu para o surgimento de uma multiplicidade de críticas às políticas de inspiração liberal – rotuladas de diversas formas, entre as quais modelo neoliberal, modelo hegemônico ou modelo único, definido a partir do Consenso de Washington –, responsabilizadas em grande parte, graças à excessiva frouxidão na regulamentação do setor financeiro, pela gravidade da crise. Na esteira dessas críticas, surgiram na época propostas de adoção de políticas econômicas de inspiração keynesiana, com uma presença mais forte do Estado na regulamentação da economia e, em alguns casos, com a estatização de bancos que se encontravam em situação muito delicada. Desconheço – ou foram muito poucas – propostas mais radicais, de cunho claramente socialista, favoráveis a uma ampla estatização da economia.
Graças ao conhecimento acumulado historicamente e à ação coordenada de diversos países, cujos governos e seus responsáveis pela condução da política econômica se reuniram sistematicamente na discussão e posterior elaboração de políticas para solucionar os problemas, a crise foi superada e o mundo voltou a uma situação de normalidade. Alguns países passaram a apresentar taxas médias de crescimento bastante elevadas, como a Índia, enquanto outros tiveram taxas médias mais modestas, porém positivas. Houve casos extremante negativos, como o da Venezuela, por razões que não cabem neste artigo. A China, que havia sido a grande coqueluche dos analistas econômicos desde que Deng Xiaoping introduzira reformas abrindo sua economia a partir de 1979, crescendo a taxas médias próximas de 10% ao ano por três décadas consecutivas, passou a crescer noutro patamar, em torno de 6,5% ao ano, no que foi chamado de ”novo normal”.
O advento da pandemia do coronavírus tem provocado nova onda de afirmações assemelhadas às da crise de 2007/2008, decretando a morte do liberalismo, do capitalismo e da economia de mercado e a crença inabalável na intervenção do Estado e no planejamento governamental para comandar a retomada do nível de atividade econômica.
Considerando que o caráter pendular da economia sempre existiu, chama a atenção a rapidez com que o pêndulo tem se movido de um lado para o outro quando tomamos por referência o grau de intervenção do Estado. Se, em tempos remotos, o pêndulo levava séculos para ir de um lado a outro do espectro e, posteriormente, muitas décadas, agora, coerentemente com a aceleração do tempo, a mudança se dá em poucos anos, exigindo um poder de resposta cada vez mais rápido das pessoas, das empresas, das organizações e dos países.
Por tudo isso, espanta-me a precipitação de muitos analistas ao alardearem, de forma peremptória e definitiva, o desaparecimento do capitalismo, baseado na propriedade privada, na livre iniciativa empresarial, na concorrência e no sistema de preços como orientador das decisões fundamentais da economia: o que, como, quanto e para quem produzir.
O que a história nos revela também é que o pêndulo não foi capaz de solucionar alguns dos graves problemas que permanecem assolando parcela considerável da população mundial, a pobreza e a extrema desigualdade de renda e de riqueza. Experiências com diferentes graus de intervenção governamental conseguiram, no máximo, atenuar esses problemas. Resolvê-los, de forma definitiva, nenhum deles conseguiu.
A própria maneira como a pandemia do coronavírus tem se expandido nos diferentes países, atacando mais fortemente as parcelas mais vulneráveis das sociedades, retrata a dimensão perversa da desigualdade social, mais acentuada em alguns países, menos em outros.
Um dos arautos que aposta no desaparecimento do capitalismo e defende uma nova ordem chamada “socialismo participativo no século XXI”, o economista francês Thomas Piketty, acaba de reafirmar sua convicção no novo livro Capital e ideologia (ainda não lançado no Brasil), ao afirmar:
A desigualdade não é econômica ou tecnológica, é ideológica e política. Em outros termos, o mercado e a concorrência, o lucro e o salário, o capital e a dívida, os trabalhadores qualificados e não qualificados, os nacionais e os estrangeiros, os paraísos fiscais e a competitividade, não existem como tais. São construções sociais e históricas que dependem inteiramente do sistema legal, fiscal, educacional e político que escolhemos instituir e adotar.
Encerro reconhecendo que posso até estar me contradizendo ao afirmar que as conclusões a respeito do fim do liberalismo são precipitadas, mas esse é um risco que faço questão de correr.
Referências bibliográficas e webgráficas
FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
GIANNETTI, Eduardo. Desenvolvimento e transição econômica: a experiência brasileira. Paper preparado para Workshop Universitário promovido pelo Grupo das EBCEs – Empresas Brasileiras de Capital Estrangeiro. Mimeo, 1991, p. 1
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Apresentação de Jacob Gorender; coordenação e revisão de Paul Singer; tradução de Regis Barbosa e Flávio R.Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas).
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Tradução de Maria Lucia Como. 18ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
PIKETTY, Thomas. Capital e ideología. Traducción de Daniel Fuentes. Barcelona: Deusto, 2019, p. 633.
SCHUMPETER, Joseph A. Historia del análisis económico I. Traducción de Lucas Mantilla. México: Fondo de Cultura Económica, 1984, p. 217.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre a sua natureza e suas causas, com a introdução de Edwin Cannan. Apresentação de Winston Fritsh. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 50.
[1] Ver meu livro Viagem pela economia (Scriptum , 2019), lançado pela Fundação Espaço Democrático.
No Comment