Brasis

“Quanto tempo um homem deve virar a cabeça,

fingindo não ver o que está vendo?”

Bob Dylan

Minha primeira lembrança pra valer do que vou focalizar neste artigo é de quando li Os dos Brasis, de Jacques Lambert. Escrevendo em 1957, o jurista, sociólogo e demógrafo francês descrevia as particularidades e as diversas formas de disparidades e contrastes de um país de dimensões continentais e repleto de diversidade como o Brasil, começando pelo isolamento do país em relação aos países que foram colonizados pela Espanha, a maior parte dos quais voltada para o Oceano Pacífico:

 

 

As dificuldades de transportes e comunicações dividiram a América do Sul em duas metades que se voltaram uma para o Oceano Atlântico e a outra para o Pacífico; são dois mundos de costas um para o outro e entre os quais o intercâmbio de pessoas e, sobretudo, de mercadorias, depois de ter sido impossível durante longo tempo, é ainda hoje em dia muito difícil.

Mais tarde, constatei que muito tempo antes, Machado de Assis chamara a atenção para o Brasil real e o Brasil oficial. “O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”, dizia ele.

Quem se referiu muitas vezes a essa diferença registrada por Machado de Assis foi Ariano Suassuna, para quem “o país oficial é o nosso, dos privilegiados, da elite; o país real é o do povo”.

Gilberto Freyre também abordou magistralmente o tema em Casa grande & senzala, um dos clássicos da historiografia brasileira.

 

Em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou a expressão Belíndia, para se referir aos contrastes existentes no Brasil, onde coexistia uma parcela que possuía padrões de vida comparáveis aos da Bélgica com outra parcela, mais numerosa, que possuía padrões de pobreza e miséria comparáveis aos da Índia.

Deparei-me também com manifestações geniais como as de Ary Barroso exaltando em 1939 as qualidades e a grandiosidade do país em Aquarela do Brasil[1], e a de Aldir Blanc e Mauricio Tapajós, que, na letra de Querelas do Brasil, afirmavam que “o Brasil não conhece o Brasil”.

Surgiram variações da Belíndia, de Edmar Bacha, entre as quais Italordânia, publicada em 2014 pela revista The Economist que afirmava que mais do que reunir características da Bélgica e da Índia o Brasil havia se transformado e ficado mais parecido com a Itália e a Jordânia. O ex-ministro Delfim Netto, por sua vez, criou a expressão Ingana para se referir ao país que tinha impostos da Inglaterra com serviços de Gana.

Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, utilizou e expressão “vários Brasis” em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo do dia 31 de maio, ao se reportar à heterogeneidade nos comportamentos dos estados brasileiros diante da epidemia do coronavírus. Examinando o contraste considerando o número de mortos por milhão de habitantes, ele cita a disparidade entre os estados do sul relativamente aos do norte do país e dos estados do sudeste em relação a alguns estados do nordeste, porém chama a atenção para uma exceção relevante: “Um estado que tem a cara do Brasil, pela extensão territorial e diversidade, como MG, exibe um número particularmente baixo: 4,56”.

Em todas essas – e muitas outras fontes – o foco central recai nas profundas desigualdades há muito existentes e ainda persistentes em nosso país. Embora todos nós soubéssemos disso, tivéssemos lido e estudado sobre isso e nos deparássemos frequentemente com exemplos disso, preferíamos, por comodidade ou descaso, passar por cima, como se não tivéssemos nada com isso.

Em recente entrevista à UOL, Delfim Netto afirmou que “ao colocar o pobre na televisão, a crise do Covid-19 tornou visível a enorme desigualdade no Brasil”.

Encerro este breve artigo com uma afirmação adicional: a crise do Covid-19 vem mostrando como é difícil enfrentar uma situação dessa natureza quando não há a menor coordenação entre os discursos, as diretrizes e as ações das diferentes esferas de governo.

Referências bibliográficas e webgráficas

CALEIRO, João Pedro. Brasil era Belíndia e virou Italordânia, diz The Economist. Disponível em https://exame.com/economia/brasil-era-belindia-e-virou-italordania-diz-the-economist/.

DELFIM NETTO, Antonio. Coronavírus tornou visível a desigualdade no Brasil. Disponível em https://economia.uol.com.br/videos/2020/04/13/delfim-netto-coronavirus-tornou-visivel-a-desigualdade-no-brasil.htm.

FRANCO, Gustavo. 80 dias de corona. O Estado de S. Paulo, 31 de maio de 2020, p. B 6.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Global Editora, 2006.

LAMBERT, Jacques. Os dois Brasis. São Paulo: Brasiliana, 1972.

Referências musicais

Aquarela do Brasil. Letra e música de Ary Barroso. Disponível na interpretação de Gal Costa em https://www.youtube.com/watch?v=CA7N-CsY1os.

Blowin’ in the wind. Letra e música de Bob Dylan. Tradução e interpretação de Diana Pequeno. Disponível em https://www.letras.mus.br/diana-pequeno/1058692/.

Querelas do Brasil. Letra de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, imortalizada pela brilhante interpretação de Elis Regina. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bkENNwwCqgM.

 

[1] De acordo com o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), o órgão responsável por captar e distribuir valores pagos pela execução de canções em eventos e nos mais diversos tipos de mídia, Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, é a música brasileira com o maior número de regravações, com 399 gravações, seguida por Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro (389 gravações), Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes (376 gravações) e Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (304 gravações),