Celso Furtado: 100 anos

“O desejo obstinado de entender o Brasil pressupôs entender por que o país era subdesenvolvido, e, corolário, a mecânica do subdesenvolvimento. ´[…] Autor de cerca de 30 títulos, alguns definitivos para a história do pensamento econômico moderno, do Brasil e América Latina, o intelectual não se satisfez em apontar caminhos, foi buscar na realidade o interlocutor passível de conduzir o país ao pleno desenvolvimento, dando às ideias a musculatura da esperança em ação.”

Rosa Freire d’Aguiar

 Introdução

Se vivo estivesse, Celso Furtado completaria 100 anos no dia 26 de julho de 2020. Insere-se, de acordo com o Prof. Rômulo Polari[1], no seleto grupo de “decifradores do Brasil”, ao lado de Roberto Simonsen, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro. Autor de vasta produção intelectual, tinha convicção de que as questões econômicas eram parte de um todo mais amplo e complexo, a ponto de afirmar que “só um economista imagina que um problema de economia é estritamente econômico”. Notabilizou-se por estudar a problemática da superação do subdesenvolvimento, antecipando em algumas décadas, a inclusão da questão cultural como elemento essencial na análise econômica, bem como da criatividade como pré-requisito da inovação. Formação econômica do Brasil, publicado em 1959 e considerado por muitos como seu livro mais importante, é leitura obrigatória de todos os cursos de graduação em Ciências Econômicas. A relevância de sua produção intelectual é tamanha, sobretudo, para a formação do pensamento econômico brasileiro e latino-americano, que alguns consideram o fato dele não ter sido laureado com o Prêmio Nobel de Economia uma das maiores injustiças proporcionadas pelo Banco Central da Suécia, responsável pela concessão do referido Prêmio, instituído em 1969.

  1. Síntese biográfica

Nascido em Pombal, sertão da Paraíba, no dia 26 de julho de 1920, Celso Furtado fez os estudos secundários no Liceu Paraibano e no Ginásio Pernambucano do Recife. Passou a sua infância e juventude no Nordeste, tornando-se conhecedor de uma realidade pela qual manteve forte interesse ao longo da vida. Transferindo-se em 1939 para o Rio de Janeiro, entrou para a Faculdade de Direito, formando-se, em 1944, pela então Universidade do Brasil (Rio de Janeiro). Após a conclusão do curso, foi convocado para a Força Expedicionária Brasileira. Com a patente de aspirante a oficial, seguiu para a Itália, onde serviu na Toscana como oficial de ligação junto ao V Exército Norte-Americano.

No período pós-guerra foi agraciado com o Prêmio Franklin D. Roosevelt, do Instituto Brasil-Estados Unidos com o ensaio Trajetória da Democracia na América. Viajou para a França, onde se inscreveu no curso de doutoramento em Economia da Universidade de Paris-Sorbonne e no Instituto de Ciências Políticas, onde pôde presenciar o esforço de reconstrução da Europa com o Plano Marshall, e a importância que naquela altura assumia o Estado como indutor do desenvolvimento. Foi também fortemente influenciado pelas ideias seminais de François Perroux, sobretudo o conceito de macrodecisão e de que o desenvolvimento poderia ser induzido por meio de ações do Estado resultantes de decisões políticas. Tornou-se doutor em Economia em 1948 pela Universidade de Paris, com a tese L’économie coloniale bresilienne, sob a orientação de Maurice Byé.

De volta ao Brasil, retoma o trabalho no Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), em que fora aprovado em concurso em 1943, juntando-se ao quadro de economistas da Fundação Getúlio Vargas, trabalhando na revista Conjuntura Econômica.

Em 1949 transfere-se para Santiago do Chile, passando a integrar, sob o comando do economista argentino Raúl Prebisch, o corpo de cientistas sociais da recém-criada Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (Cepal), organismo das Nações Unidas (ONU), criado com o objetivo de pensar e propor políticas públicas adequadas à região, cujas características eram muito distintas das existentes na Europa e na América do Norte.

Ainda como funcionário da ONU e de volta ao Brasil, chefiou o Grupo Misto Cepal-BNDE durante o segundo Governo Vargas, dirigiu a revista Econômica Brasileira, elaborou durante o governo de Juscelino Kubistchek o Plano de Desenvolvimento do Nordeste, que iria dar origem à Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), e foi ministro do Planejamento do governo João Goulart, para o qual elaborou o Plano Trienal, tentativa malsucedida de conter a crescente inflação, assegurar o crescimento e criar condições políticas para a sobrevivência do regime democrático.

Com os direitos políticos cassados pelo regime militar que assumiu o poder em 1964, foi para o exílio, concentrando forças na vida acadêmica, primeiro em Yale e, depois, por mais de uma década, na Sorbonne. O historiador Luiz Felipe Alencastro, que chegou a Paris em 1966, um ano depois de Furtado, também exilado por causa da ditadura militar, lembra, em matéria publicada no Valor Econômico, que o amigo sempre teve uma “discrição de sertanejo num meio universitário que é vaidoso”. Na capital francesa, Furtado era expoente na enorme turma de brasileiros e latino-americanos, entre os quais políticos, intelectuais e artistas – como Fernando Henrique Cardoso, Caetano Veloso e Gilberto Gil – que tinham como ponto de encontro e refúgio a casa de Violeta Arraes Gervaiseau, irmã do então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, preso e cassado pelo regime militar. Durante o longo período ausente do País, jamais perdeu o interesse pela política e pela economia do Brasil e da América Latina.

Com a anistia e a redemocratização, voltou ao Brasil e assumiu em 1985 o Ministério da Cultura do governo José Sarney. Concluído seu mandato à frente do Ministério, Furtado continuou em franca atividade intelectual até sua morte em 2004.

Em setembro de 2001, Celso Furtado foi eleito por aclamação “Economista Emérito do Brasil”, na plenária final do Congresso Brasileiro de Economia, realizado em Recife. Em 2003, a Cátedra e a Rede da Unesco e da Universidade das Nações Unidas (REGGEN), a Associação de Economistas da América Latina (AEALC) e o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) apresentaram em conjunto o nome de Celso Furtado como candidato ao Prêmio Nobel de Economia em 2004. Em janeiro de 2004, os documentos foram formalmente enviados à Academia de Ciências da Suécia. Para frustração dos brasileiros, que jamais tiveram a oportunidade de comemorar a concessão de um Prêmio Nobel a algum conterrâneo, Furtado não foi escolhido, tendo o Prêmio Nobel de Economia daquele ano sido dividido por Finn Kydland e Edward Prescott, por suas contribuições à macroeconomia dinâmica, em decorrência de seus estudos sobre a consistência temporal da política econômica e as forças motrizes por trás dos ciclos de negócios.

  1. Um teórico à frente de seu tempo[2]

 Estudioso por toda a vida, Celso Furtado foi dotado de enorme clarividência, antecipando-se a outros teóricos da ciência econômica em diversos tópicos. Neste artigo, limitar-me-ei a três aspectos: (i) cultura como base para a economia; (ii) a importância da criatividade como pré-requisito para a inovação; (iii) contribuições para  a economia do desenvolvimento.

2.1. A cultura como base para a economia

Embora a ênfase na estreita relação entre cultura e desenvolvimento tenha se acentuado a partir da década de 1970 e, ainda mais na década seguinte, quando Furtado tornou-se ministro da Cultura no governo de José Sarney, sua preocupação com o vínculo entre cultura e economia, e, por extensão, o desenvolvimento, é muito anterior. Ou seja, é parte indissociável na análise interdisciplinar do (sub)desenvolvimento brasileiro; que, por sua vez, origina-se de uma abordagem histórico-estrutural, em que não apenas se percebem os fortes laços entre cultura e economia, mas também com os conceitos de desenvolvimento, criatividade e dependência.

Desta forma, para ilustrar o estreito vínculo entre cultura e economia, vamos realçar: (i) as principais características da visão teórica de Celso Furtado, sintetizadas por Gildo Marçal Brandão; (ii) a dependência econômica, política e cultural estabelecida em conexão com a visão estruturalista desenvolvida durante os anos em que serviu a Cepal, embora seu afastamento da teoria da dependência na década de 1970 tenha ocorrido numa época em que muitos intelectuais latino-americanos estavam ainda caminhando em sua direção; (iii) a importância da criatividade na cultura de uma nação e o crescente distanciamento da cultura local à medida que os padrões de desenvolvimento dos países centrais foram se tornando cada vez mais dominantes nos países periféricos.

Na perspectiva de Gildo Marçal Brandão, as principais características da elaboração furtadiana são:

a) o tratamento da economia pelo método-histórico-estrutural, violentando o mainstream da disciplina; b) a historicização do estruturalismo latino-americano, especialmente das teorias originariamente defendidas por Raúl Prebisch; c) a crítica à teoria ricardiana das vantagens comparativas no comércio internacional; d) a percepção de que o mercado, não só na América Latina, mas, em geral, é uma entidade incapaz de se autorregular, o que torna inevitável e necessária a intervenção planejadora do Estado; e) a hipótese de que o subdesenvolvimento não é um estágio que todas as sociedades têm que percorrer no seu caminho para o desenvolvimento, mas um processo qualitativamente distinto da experiência dos países centrais e um produto necessário, tanto quanto o desenvolvimento, do processo de expansão da economia capitalista mundial; f) a percepção de que a heterogeneidade estrutural e o dualismo dos países dependentes e produtos da expansão europeia como o nosso, reproduzem também no plano doméstico a assimetria entre centro industrializado e periferia explorada, hiato capaz de pôr em risco a unidade de ação. 

Neste diapasão, os países periféricos (subdesenvolvidos), dependentes dos países centrais (desenvolvidos), são submetidos a uma exploração crescente, que reforça cada vez mais essa conexão entre dependência e exploração, a ponto de se constituir num ciclo de retroalimentação sistemática. Esse ciclo de dependência e exploração acaba se perpetuando por meio de três dimensões: econômica, política e cultural.

A dimensão econômica pode ser, por sua vez, subdividida em: (a) comercial; (b) financeira; e (c) tecnológica.

  1. A comercial decorre das relações entre países centrais e periféricos resultante da divisão internacional do trabalho. Nela, os países centrais especializaram-se na produção de bens de consumo duráveis e de bens de capital, enquanto que os países periféricos na produção de bens primários, em especial, alimentos e matérias-primas. Como os preços desses produtos evoluem de forma assimétrica, os países periféricos foram sendo obrigados a produzir (e exportar) quantidades cada vez maiores de bens primários para continuar a importar o mesmo volume de bens de consumo duráveis e de bens de capital. Tal situação, ao se estender no tempo por longos períodos, constitui-se num processo de transferência de riqueza dos países periféricos para os centrais. Esse mecanismo, que é o ponto alto da interpretação dependentista, tornou-se conhecido como “deterioração dos termos de intercâmbio” ou “deterioração das relações de trocas”.
  2. A financeira se explica pela transferência de recursos em direção aos países centrais por meio do pagamento de royalties, das remessas de lucros das empresas multinacionais e do pagamento de elevado montante de juros (onerando pesadamente a balança de serviços).
  3. A tecnológica pode ser explicada pelo atrelamento dos países periféricos à tecnologia desenvolvida nos países centrais. Ou seja, além de não desenvolverem tecnologias próprias, os países periféricos acabam muitas vezes utilizando máquinas e equipamentos tecnologicamente já superados nos países centrais, pelos quais ainda pagam royalties por sua utilização.

A dimensão política, por seu turno, tem na internacionalização dos centros de decisão a sua face mais visível. Pressionados pelo ciclo de exploração e dependência, os países periféricos acabam se tornando excessivamente vulneráveis, o que faz com que muitas das decisões políticas adotadas não reflitam necessariamente o ponto de vista da maior parte de suas respectivas populações, mas um alinhamento de suas elites com os interesses internacionais. Tal fenômeno pode ser observado tanto na política interna como na política internacional, quando a posição desses países é fortemente influenciada pelos países centrais por ocasião de tomadas de decisão em organismos multilaterais como a ONU, a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Por fim, a dimensão cultural pode ser explicada pela assimilação dos valores, hábitos, ideais e comportamentos dos países centrais por parte das populações e das elites dos países periféricos. Tal influência é acentuada pelo desenvolvimento da telemática, que envolve os avanços tecnológicos no campo da microeletrônica e telecomunicações.

2.2. A importância da criatividade como pré-requisito da inovação

No que se refere à relevância da criatividade, Alfredo Bosi afirma no Prefácio de Criatividade e dependência na civilização industrial:

A história das culturas mostra a emergência, em determinados lugares e tempos, de obras de arte e pensamento tão belas e complexas que resistiram aos séculos e ainda hoje encantam e ensinam, apesar das distâncias às vezes milenares e das diferenças de estilo de vida e concepção de mundo. A palavra-chave para Celso Furtado passa a ser “criatividade”. É nesse conceito que se apoia a sua admiração pela tragédia ática, pela historiografia de Heródoto, pela filosofia dos pré-socráticos, pela escavação moral e religiosa dos hindus, em suma, pela ciência, pela arte e pela filosofia criadas em sociedades de baixo excedente econômico.

O reconhecimento da criatividade como pré-requisito da inventividade humana faz de Furtado um precursor, de certa forma, de autores que se consagraram internacionalmente décadas depois como grandes especialistas em inovação, entre os quais Michael Porter e Clayton Christensen, ou mesmo da Economia Criativa, uma nova linha de pesquisa que surgiu na transição para o século XXI.

Aliás, é no livro Criatividade e dependência na sociedade industrial que a então secretária Cláudia Leitão foi buscar a epígrafe do Plano da Secretaria de Economia Criativa, apresentado à nação em 2011: “Quaisquer que sejam as antinomias que se apresentem entre as visões da história que emergem em uma sociedade, o processo de mudança social que chamamos desenvolvimento adquire certa nitidez quando o relacionamos com a ideia de criatividade”

Furtado complementa afirmando que “a gama maravilhosa de culturas que já surgiram sobre a Terra testemunha o fabuloso potencial de inventividade do homem. Se algo sabemos do processo de criatividade cultural, é exatamente que as potencialidades do homem são insondáveis: em níveis de acumulação que hoje nos parecem extremamente baixos produziram-se civilizações que, em muitos aspectos, não foram superadas”.

Frente a tamanha admiração pelas genuínas manifestações culturais decorrentes da criatividade humana, não é motivo de surpresa a decepção manifestada por Furtado em obras mais recentes diante da homogeneização cultural representada pelo predomínio dos padrões de consumo – moda, música, costumes e hábitos – típicos de populações de nações desenvolvidas ocidentais, em especial da norte-americana, por parte das populações dos países subdesenvolvidos.

2.3. Contribuições para a economia do desenvolvimento

Reconhecido e consagrado como economista, Celso Furtado manifestou desde cedo sua visão do desenvolvimento não como um processo limitado às variações econômicas, mas como parte de algo muito mais amplo. Sem jamais perder de vista a realidade do Brasil – e do Nordeste, sua região de origem, em particular – Furtado procurou observar a realidade nacional por meio do entendimento racional proporcionado pela ciência de um modo geral (histórica, econômica, política, social) como parte inicial do projeto de mudança, entendida sempre como um desejo de constante aperfeiçoamento. Tal visão, somada ao pragmatismo já salientado anteriormente, são essenciais para a compreensão do pensamento e da ação furtadianos.

Focalizando mais diretamente as abordagens de Furtado a respeito do fenômeno do desenvolvimento, cinco aspectos, a meu juízo, merecem destaque especial: (i) a negação do desenvolvimento como uma série de estágios sucessivos; (ii) a negação do subdesenvolvimento como uma etapa inevitável para o atingimento de níveis superiores de desenvolvimento: (iii) a concepção de desenvolvimento; (iv) a complexidade e as ambiguidades inerentes à ideia de desenvolvimento; e (v) o mito do desenvolvimento econômico.

2.3.1. Desenvolvimento entendido como uma sucessão de etapas

No subcampo intitulado economia do desenvolvimento houve acentuado predomínio, durante determinado período de tempo, de teorias que explicavam a evolução das sociedades como uma sucessão de estágios, numa perspectiva linear coerente com a própria visão dominante da ciência. Tal predomínio fez com que visões ideologicamente opostas adotassem a mesma perspectiva. Podemos enquadrar nessa perspectiva as teorias de Friedrich List, de Karl Marx, de W. W. Rostow e de Alvin Toffler.

Discordando frontalmente da ideia de que o subdesenvolvimento é uma fase que os países devem ultrapassar na busca de seu desenvolvimento, Furtado se opõe a essa visão etapista adotado por muitos teóricos da economia do desenvolvimento.

2.3.2. Subdesenvolvimento

Vera Cepêda, num texto intitulado Celso Furtado e a interpretação do subdesenvolvimento, descreve a perspectiva teórica inovadora desenvolvida por Furtado para renegar a visão até então preponderante de considerar o subdesenvolvimento como uma etapa pela qual todos os países deveriam, necessariamente, passar para atingirem graus mais elevados de desenvolvimento.

A interpretação do Brasil formulada por Celso Furtado conecta economia e sociedade de uma maneira inédita no pensamento social brasileiro. Possui uma originalidade e uma força teórica que advém da intersecção proposta entre desajustes econômicos e desajustes sociais, entre atraso e modernidade, itens que predominavam na agenda  do debate nacional desde o início do século [XX], porém tratados isoladamente. A concepção do subdesenvolvimento dava nova resposta à sensação de sermos “[…] desterrados em nossa própria terra” (HOLANDA, 1993, p. 3), realizando uma inversão explicativa – não éramos diferentes, insuficientes ou atrasados por conta de uma falha em nosso caráter nacional. Ao contrário, éramos parte de um desenho histórico estruturado e sistêmico – o quadro das formações tardias, que Furtado denomina também de capitalismo bastardo, e que de alguma forma previa e exigia que algumas nações no concerto mundial permanecessem nesse estágio. Nossos problemas eram nacionais, porém nem tanto.

O pensamento estruturalista de Celso Furtado assinala que o processo histórico que conduziu ao desenvolvimento através do capitalismo engendrou seu revés, ou seja, países imersos no sistema, mas carentes de desenvolvimento. O dinamismo capitalista produziu o desenvolvimento no seu centro difusor, porém, em certas regiões periféricas que foram irradiadas por ele, estabeleceu-se outro processo, que não teve a mesma forma, nem compartilhou dos mesmos efeitos. A falta de desenvolvimento dos países que estão à margem do centro capitalista, mas complementares à realização do sistema, foi denominada de subdesenvolvimento. Desenvolvimento e subdesenvolvimento são, portanto, formações coetâneas que jamais podem ser entendidas como resultado de uma etapa.

Assim, contrariando a visão etapista do desenvolvimento econômico, desenvolvimento e subdesenvolvimento são situações históricas distintas, porém derivadas de um mesmo impulso inicial – faces de uma mesma dinâmica – com o subdesenvolvimento se constituindo num processo histórico autônomo e heterogêneo de conformação estrutural produzido pela forma como se propagou o progresso tecnológico no plano internacional, e derivado de malformações sociais e econômicas durante o processo de difusão do sistema capitalista na periferia. Toda economia subdesenvolvida é, portanto, necessariamente dependente e periférica, pois o subdesenvolvimento é uma criação da situação de dependência e um desequilíbrio na assimilação dos avanços tecnológicos produzidos pelo capitalismo industrial a favor das inovações que incidem diretamente sobre o estilo de vida.

Posto que o subdesenvolvimento surge de uma assimetria estrutural nas relações da periferia com o núcleo do sistema, a sua tomada de consciência esclarece as limitações impostas à nação, ou região, pelo caráter da divisão internacional do trabalho existente e por esta estrutura socioeconômica que tende a se perpetuar em função de elementos: da matriz institucional pré-existente, orientada para a divisão da riqueza e da renda; das condições históricas ligadas à emergência do sistema de divisão internacional do trabalho; do aumento da taxa de exploração dos países pobres e do uso do excedente adicional pelas elites, para financiamento de seu consumo mimético, de que resulta uma ruptura cultural que se manifesta através do processo de modernização; da orientação do crescimento em função dos interesses da minoria “modernizada”; do custo ascendente da tecnologia requerida para acompanhar por meio da produção local os padrões de consumo dos países avançados, o que, por seu lado, facilita a penetração das grandes empresas de ação internacional; e, da necessidade de fazer face aos custos crescentes em moeda estrangeira de produção destinada ao mercado interno, abrindo o caminho à exportação de mão-de-obra barata sob o disfarce de produtos manufaturados.

Desta maneira, qualquer tentativa de superação do subdesenvolvimento deve estar assentada num projeto político, fundado em percuciente conhecimento da realidade e esposado por amplos segmentos sociais, que aumente o poder regulador das atividades econômicas, única forma de colocá-las a serviço da satisfação das necessidades sociais legitimamente conhecidas, e capaz de romper com o quadro de dependência estrutural de uma economia periférica. Nesta construção, Furtado é enfático ao colocar que qualquer concepção de desenvolvimento não pode alienar-se de sua estrutura social, e nem tampouco a formulação de uma estratégia desenvolvimentista pode ser concebida sem preparação ideológica. Este processo deve estar ancorado à ideia de um projeto nacional que recupere o mercado interno como centro dinâmico da economia, reforme as estruturas anacrônicas que pesam sobre a sociedade e comprometem sua estabilidade, e resista às forças que operam no sentido da desarticulação do sistema econômico nacional e que ameaçam a unidade federativa.

2.3.3. Desenvolvimento

 Descartando a perspectiva economicista dominante, que de certa forma iguala crescimento econômico, que é a simples variação dos indicadores quantitativos, a desenvolvimento, que implica, além destes, na variação dos indicadores qualitativos associados à melhoria do padrão de vida de grosso da população, Frutado define desenvolvimento como “[…] um processo de mudança social pelo qual um número crescente de necessidades humanas – preexistentes ou criadas pela própria mudança – é satisfeito através de uma diferenciação do sistema produtivo decorrente da introdução de inovações tecnológicas”.

Vale destacar que nas concepções contemporâneas de desenvolvimento, chamadas muitas vezes de desenvolvimento sustentável, é imprescindível a incorporação de variáveis ambientais.

2.3.4. Complexidade e ambiguidades

 O desenvolvimento é, naturalmente, complexo, pois mesmo em suas concepções mais simples e limitadas, comporta um conjunto de dificuldades, em especial no que se refere à aferição de seus indicadores de ordem qualitativa, nem sempre de fácil mensuração. Entendido como “um processo de mudança social”, tal complexidade torna-se ainda maior, ensejando comparações, na maior parte das vezes inadequadas, entre nações que se industrializaram no final do século XVIII e início do século XIX, com as que se industrializaram tardiamente, já no segundo quartel do século XX. Outra comparação inadequada, bastante comum, é aquela realizada entre nações de estruturas e dimensões geográficas, bem como de tamanho de populações muito distintas. Por fim, ainda dentro da seara da complexidade, percebemos o viés de considerar como parâmetro de desenvolvimento, valores, costumes e tradições da civilização ocidental, no caso, os de países de industrialização avançada.

A par da complexidade em torno da ideia de desenvolvimento, Furtado destaca, em Criatividade e dependência na civilização industrial, portanto com a maturidade propiciada pelas experiências adquiridas em suas experiências no Brasil, no Chile, nos Estados Unidos e na Europa, já no final da década de 1970, duas formas de ambiguidades.

A ideia de desenvolvimento, referindo-se a uma sociedade, comporta, sabidamente, toda uma gama de ambiguidades. De um ponto de vista descritivo, ela se refere ao conjunto de transformações nas estruturas sociais e nas formas de comportamento humano que acompanham a acumulação no sistema de produção. Descreve-se, assim, o processo cultural e histórico cuja dinâmica se apoia na inovação técnica (fundada na experiência empírica ou em conhecimentos científicos), posta a serviço de um sistema de dominação social.

Depois de discorrer sobre essa forma de ambiguidade, enfatizando a forte influência da ideologia liberal e seu discurso composto de elementos da filosofia naturalística, Furtado volta-se para outra forma de ambiguidade não menos importante inerente à ideia de desenvolvimento.

A ideia de desenvolvimento comporta ambiguidades ainda maiores quando a consideramos no quadro da difusão da civilização industrial. Em muitas regiões a modernização também significou ocidentalização, ou seja, o desaparecimento de sistemas de cultura cujos valores nem sempre encontravam adequados substitutivos. Mesmo quando a transplantação resultou de um projeto executado sob a égide do Estado, como no caso do Japão da Restauração Meiji, o resultado final afastou-se suficientemente do modelo original para invalidar toda tentativa de apreciação com base nos conceitos derivados da história europeia. O grupo aristocrático que assumiu o controle do Estado japonês pela metade do século XIX teve em vista objetivos essencialmente políticos: criar as bases de um poder nacional capaz de preservar a independência do país face à ofensiva imperialista da era vitoriana.

A consequência dessa forma de ambiguidade não deixa qualquer motivo para comemoração. Nas palavras de Furtado: “Esse projeto logo se desdobrou noutro visando a criar uma ‘esfera de influência’, o que levou à guerra com a China no último decênio do século XIX e com a Rússia no primeiro decênio do século XX”.

2.3.5. Mito

Em seu intenso trabalho composto de dezenas de livros e centenas de artigos, Furtado retorna com frequência a conceitos como os de dependência, concentração de renda, desigualdade social e regional, mimetismo cultural, relações assimétricas centro-periferia, mercado interno, criatividade e outros, mantendo como pano de fundo a visão estruturalista do subdesenvolvimento e do desenvolvimento.

Para Clóvis Cavalcanti, no entanto,

[…] é no livro O mito do desenvolvimento econômico que Furtado levanta duas questões não comuns ao restante de sua importantíssima obra, ou pelo menos não tão categoricamente formuladas como nele. A primeira das questões diz respeito aos impactos do processo econômico no meio físico, na natureza – um tema completamente alheio ao núcleo do pensamento tradicional da ciência da economia. A segunda se refere à constatação do caráter de mito moderno do desenvolvimento econômico.

De fato, a preocupação com questões relacionadas ao meio ambiente ganhou enorme espaço nas discussões contemporâneas a respeito de seu papel no processo de desenvolvimento, a ponto de estar presente em cursos de graduação ou programas de mestrado e doutorado com os nomes de Economia Ambiental ou Economia Ecológica.

Com relação à segunda questão identificada por Cavalcanti, percebe-se uma preocupação crescente com algumas das consequências decorrentes da generalização das formas de consumo prevalecentes nos países cêntricos em outras regiões, entre as quais a fuga da juventude para a contracultura e, mais recentemente, os fluxos migratórios de contingentes significativos da população de nações periféricas para países da Europa e da América do Norte.

  1. Um brasileiro com notável espírito público

 Encerro este artigo enaltecendo o elevado espírito público revelado por Celso Furtado ao longo de toda a sua vida, na qual exerceu papeis relevantes servindo a diferentes governos, demonstrando sempre alto grau de lealdade, ética e compromisso com a responsabilidade na gestão dos recursos públicos. Importante ressaltar também como características pessoais marcantes a generosidade e o espírito conciliador de Celso Furtado, fatores essenciais para que convivesse em perfeita harmonia com pensadores contemporâneos detentores de ideias que, em determinados momentos, eram muito diferentes daquelas por ele defendidas. Como enfatiza Alencastro, “a agressividade não era afeita ao espírito cordato e à elegância de Celso Furtado, que não gostava de falar mal de ninguém”.

Por todas essas razões, as inúmeras homenagens que têm sido prestadas a Celso Furtado por ocasião do centenário de seu nascimento são plenamente justificadas. Homens como ele fazem muita falta ao Brasil.

Referências bibliográficas

BRANDÃO, Gildo Marçal. O peregrino da ordem do desenvolvimento. Em LIMA, Marcos Costa; DAVID, Maurício Dias (orgs.). A atualidade do pensamento de Celso Furtado. São Paulo: Francis, 2008, pp. 65-72. 

CAVALCANTI, Clóvis. Meio ambiente, Celso Furtado e o desenvolvimento como falácia. Em LIMA, Marcos Costa; DAVID, Maurício Dias (orgs.). A atualidade do pensamento de Celso Furtado. São Paulo: Francis, 2008, pp. 199-214.

 CEPÊDA, Vera Alves. Celso Furtado e a interpretação do subdesenvolvimento. Em LIMA, Marcos Costa; DAVID, Maurício Dias (orgs.). A atualidade do pensamento de Celso Furtado. São Paulo: Francis, 2008, pp. 43-63.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 24. ed. São Paulo: Nacional, 1991.

_______________ Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

_______________ O mito do desenvolvimento econômico. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

KLEIN, Cristian; VASCONCELOS, Gabriel. Pensamento heterodoxo de Celso Furtado, que completaria 100 anos, permanece atual. Valor Econômico, 24 de julho de 2020.

PLANO da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações, 2011-2014. Brasília, Ministério da Cultura, 2011.

[1] Depoimento na solenidade em homenagem ao centenário do nascimento de Celso Furtado, promovido pelo Conselho Regional da Paraíba (Corecon-PB), em 26 de julho de 2020 (https://www.youtube.com/watch?v=boegz3l_c98&t=4085s

[2] Diversos trechos do item 2 foram baseados no artigo Reflexões sobre cultura e desenvolvimento: Celso Furtado, Douglass North e Amartya Sen, escrito em parceria com o Prof. Dr. Eduardo José Monteiro da Costa, publicado nos Cadernos CEPEC, da UFPA.