A grande gripe
“A primeira vítima de uma guerra é a verdade”.
Senador Hiram Johnson (em 1917)
Ao se deparar com o título deste artigo, muita gente deve ter feito uma associação imediata com a pandemia que assola o mundo, tendo dominado o noticiário desde o último mês de março. Não é o caso. O título deste artigo é o de um livro escrito em 2004, mas traduzido para o português e lançado no Brasil apenas em maio deste ano.
O lançamento, que não poderia ocorrer em momento mais oportuno em face da pandemia do coronavírus, foi precedido de tantos artigos, resenhas e entrevistas com o autor, que, ao finalmente ler o livro, tinha já uma boa noção do que iria encontrar ao longo da leitura. Felizmente não sucumbi à tentação da não-leitura expressa por Pierre Bayard no interessantíssimo Como podemos falar dos livros que não lemos?.
Neste livro – cuja leitura recomendo – Pierre Bayard, o autor, aponta os diferentes graus em que podemos nos referir aos livros que lemos… e que não lemos.
Entre os primeiros, os que lemos, há os que nos marcam de alguma forma, razão pela qual nos lembramos deles com detalhes. Mas há também os que lemos e, passado algum tempo, deles esquecemos quase completamente.
Entre os segundos, os que não lemos, há alguns livros que apenas folheamos e ficamos com uma ideia vaga de seu teor. Mas há alguns que jamais chegaram às nossas mãos, porém, tanto lemos ou ouvimos referências e comentários sobre eles que acabamos podendo falar dos mesmos como se os tivéssemos lido.
A grande gripe, objeto deste artigo, poderia perfeitamente permanecer na última tipologia das descritas acima. Porém, felizmente, acabei me dedicando à sua leitura integral e posso, com certeza, incluí-lo entre os que me marcaram profundamente.
Nos agradecimentos, o autor John Barry, que é historiador e jornalista, afirma que “a princípio, este livro devia ser a história simples e clara da epidemia mais mortífera da história da humanidade, contada a partir das perspectivas tanto dos cientistas que tentaram vencê-la quanto dos líderes políticos que tentaram enfrentá-la. Achei que levaria dois anos e meio para escrever o livro, três no máximo”.
Na sequência, reconhece: “Mas o plano não deu certo. Em vez disso, levei sete anos. Ele evoluiu (e, espero, de forma positiva) e acabou virando algo bem diferente do que eu havia originalmente concebido. […] Demorei tanto tempo, em parte, porque parecia impossível escrever a respeito dos cientistas sem explorar a natureza da medicina norte-americana naquela época, pois os cientistas neste livro não resumiram seus trabalhos a pesquisas de laboratório. Eles mudaram a própria natureza da medicina nos Estados Unidos. […] Além disso, encontrar material a respeito da epidemia revelou-se tarefa extremamente difícil. Foi fácil encontrar histórias de mortes, mas meus interesses sempre se concentraram naqueles que tentaram exercer algum tipo de controle durante os acontecimentos. E essas pessoas estavam ocupadas em excesso, sobrecarregadas em excesso para se preocupar em manter registros”.
Ao chegar ao fim da leitura, fiquei com a certeza de que o esforço de John Barry para superar tamanhas dificuldades valeu a pena, pois resultou não apenas num relato minucioso dos acontecimentos diretamente relacionados com a epidemia, mas também em uma série de explicações esclarecedoras sobre questões metodológicas e sobre a incrível evolução das faculdades de medicina norte-americanas no período, que foram fundamentais para o acelerado desenvolvimento universitário posterior, responsável por transformar os Estados Unidos num extraordinário celeiro de reconhecidos pesquisadores, muito dos quais laureados com o Prêmio Nobel em diferentes campos do saber.
Diante do volume e da riqueza de informações que o livro oferece, vou me limitar a comentar apenas três aspectos que me chamaram mais atenção.
O primeiro relaciona-se com o surgimento, em Baltimore, de uma universidade que, com o passar dos anos, veio a se constituir num dos baluartes do sistema universitário do país, a Johns Hopkins. Enfatizando o papel desempenhado pelo cientista inglês Thomas Huxley, que foi o orador da cerimônia de inauguração em setembro de 1876, o autor do livro revela o caráter revolucionário daquela instituição. Em seu discurso, Huxley “louvou os ousados objetivos da Hopkins, expôs as próprias teorias da educação e exaltou o fato de que a existência da Hopkins significava que ‘finalmente, nem o sectarismo político nem o eclesiástico’ interfeririam na busca pela verdade”.
Em um trecho posterior do discurso, Huxley destaca a importância desse descolamento entre política, religião e ciência, afirmando: “A revolução da ciência moderna, e, especialmente, da ciência médica, começou quando ela deixou de se concentrar apenas na resposta para ‘O que posso saber?’ e, mais importante, mudou o método de investigação, mudou sua resposta para ‘como posso saber?’”.
A reflexão acerca desta verdadeira revolução na filosofia da ciência é encerrada com uma menção à famosa teoria de Thomas Kuhn, consagrada no livro A estrutura das revoluções científicas, que dá amplo uso à palavra “paradigma”, argumentando que em qualquer momento determinado, um paradigma específico, um tipo de verdade percebida, domina o pensamento em qualquer ciência.
Fecho meu comentário a este primeiro aspecto reproduzindo considerações do autor sobre o impacto representado por essa forma de investigação: “Segundo Kuhn, o paradigma predominante tende a congelar o progresso – indiretamente, ao criar um obstáculo mental às ideias criativas e diretamente, por exemplo, ao impedir que os fundos para pesquisa sejam destinados a ideias verdadeiramente novas, em especial se entrarem em conflito com o paradigma. Kuhn argumenta que, ainda assim, os pesquisadores por fim descobrem o que ele chama de ‘anomalias’ que não se encaixam no paradigma. Cada uma erode a base do paradigma e, quando se acumulam o suficiente para miná-lo, o paradigma colapsa. Então, os cientistas buscam um novo paradigma que explique tanto os fatos antigos quanto os novos[1]”.
O segundo aspecto que gostaria de destacar refere-se ao surgimento e forma de disseminação da epidemia que se tornou conhecida pelo nome de “gripe espanhola” e, nesse particular, parece-me inevitável pensar na diferença com a pandemia do Covid-19, principalmente no que se refere ao contexto histórico.
Ao contrário da intensa mobilidade do mundo contemporâneo, viabilizado pelo extraordinário avanço dos meios de transporte e de comunicação, que permite que as pessoas viajem a qualquer parte do mundo em poucas horas, a gripe espanhola surgiu numa época em que o deslocamento combinava as dificuldades físicas e as limitações tecnológicas dos meios de transporte à questão geopolítica. E foi justamente este último fator que possibilitou a disseminação em escala mundial de um problema que, se não fosse pela guerra, poderia ter se mantido num plano local ou regional.
Vou recorrer a um pequeno trecho de A grande gripe para expor, de forma sintética, como ocorreu o processo de disseminação da gripe espanhola: “Evidências epidemiológicas sugerem que um novo vírus influenza se originou no condado de Haskell, Kansas, no princípio de 1918. Indicam ainda que esse vírus viajou para o leste, atravessando o estado até uma enorme base militar e dali seguiu para a Europa. Mas tarde, começou a varrer a América do Norte, a Europa, a América do Sul, a Ásia e a África, chegou até em ilhas isoladas no Oceano Pacífico e foi pelo mundo afora. Em seu rastro, deixou os lamentos que escapavam das bocas dos enlutados, como o som do vento”.
O terceiro e último aspecto – que de certa forma também tem a ver com o já aludido contexto histórico – refere-se às formas de comunicar o que estava ocorrendo. Num mundo como o de hoje, tão impregnado de fake news e narrativas doutrinadoras, é interessante observar o que ocorreu um século atrás. A gripe espanhola surgiu quando a humanidade testemunhava os derradeiros momentos da Primeira Guerra Mundial e, para manter elevado o espírito da população, tanto o governo federal como muitos governantes estaduais e municipais decidiram minimizar as terríveis consequências da epidemia. Nessa linha, a maior parte dos jornais e emissoras de rádio referia-se ao problema afirmando: “É uma simples gripe”. Diante disso, muitas providências que poderiam ter sido adotadas para impedir ou neutralizar a disseminação deixaram de sê-lo, fazendo com que a epidemia resultasse num elevado número de infectados e mortos em quase todas as cidades norte-americanas. Uma das poucas exceções ocorreu numa localidade chamada Gunnison e vale a transcrição:
Mas não Gunnison. Não era uma cidade minúscula ou isolada. Era cortada pela ferrovia, um centro de suprimentos para a região centro-oeste do estado [do Colorado], sede do Western State Teachers College. No início de outubro – muito antes de qualquer caso de gripe –, Gunnison e a maioria das cidades vizinhas emitiram ordens de fechamento e de proibição de aglomerações públicas. Depois, Gunnison decidiu se isolar por completo. Policiais bloqueavam todas as estradas. Os condutores de trem avisavam a todos os passageiros que se alguém pusesse o pé na plataforma em Gunnison para esticar as pernas seria preso e ficaria em quarentena por cinco dias. Dois homens de Nebraska que queriam atravessar a cidade de carro para ir ao condado vizinho desafiaram o bloqueio e foram parar na cadeia. Nesse ínterim, a cidade de Sargents, nos arredores, teve seis mortes em um único dia – em uma população total de 130 habitantes.
No início da epidemia, ainda no dia 27 de setembro – parecia ter sido anos antes –, o jornal de Wisconsin, Jefferson County Union, relatara a verdade sobre a doença e o general encarregado do Departamento de Moral do exército decretava que a reportagem era “prejudicial aos ânimos” e a remeteu para autoridades de policiamento para que “tomassem qualquer iniciativa que julgarem apropriada”, inclusive processo criminal. Naquele momento, depois de semanas de mortes e com o fim da guerra, o Gunnison News-Chronicle, ao contrário de praticamente todos os outros jornais do país, não brincava e avisava: “Essa doença não é uma piada, um motivo de troça, mas sim uma terrível calamidade”.
Gunnison escapou sem uma morte.
Essa manipulação das informações por parte de autoridades e/ou dos meios de comunicação – tão presentes em nossa própria realidade – é objeto da reflexão final de John Barry. No epílogo, ele alerta que “por pior que a doença em si fosse, as autoridades e os meios de comunicação ajudaram a criar aquele pavor; não porque exageravam sobre a doença, mas porque minimizaram o cenário em uma tentativa de tranquilizar a população. Uma área especializada entre os consultores de relações públicas evoluiu nas últimas décadas, a da chamada ‘comunicação de risco’. Não tenho muito apreço pelo termo. Se existe uma lição deixada pelo episódio de 1918 é que os governos precisam falar a verdade durante uma crise e comunicação de risco implica em gerenciá-la. Mas verdade não se gerencia: se conta”.
Mais adiante, ele complementa: “Em 1918, as mentiras das autoridades e da imprensa nunca permitiram que o terror se tornasse real. O público não podia confiar em nada, então não se sabia de nada. Mas a estrutura social é baseada em confiança e, quando ela se rompe, as pessoas alienam-se não apenas das autoridades, mas uma da outra. O pavor se infiltrou na sociedade que impediu uma mulher de cuidar da irmã; que impediu enfermeiros experientes de atender a maioria das chamadas urgentes. O medo, não a doença, ameaçou a ruptura da sociedade. Como Victor Vaughan – um homem cuidadoso, comedido e que não exagerou em suas argumentações – advertiu, a civilização poderia ter desaparecido dentro de semanas”.
O livro tem muitos outros pontos interessantes e permite estabelecer importantes paralelos com o que estamos vivendo atualmente: das incertezas referentes a uma eventual segunda onda ao acompanhamento dos esforços de médicos e pesquisadores, na luta contra a doença e na busca de remédios eficientes e, sobretudo, de uma vacina confiável. Por isso, sugiro entusiasticamente a leitura de A grande gripe.
Encerro com a importante advertência de John Barry: “A lição derradeira de 1918, uma simples e ao mesmo tempo a mais difícil de executar, é que as autoridades devem diminuir as chances de que o pânico aliene a todos. A sociedade não pode funcionar com cada um cuidando de si. Por definição, nenhuma civilização sobrevive assim”.
Referências bibliográficas
BAYARD, Pierre. Como falar dos livros que não lemos? Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
BARRY, John M. A grande gripe: a história da gripe espanhola, a pandemia mais mortal de todos os tempos. Tradução de Alexandre Raposo, Carmelita Dias, Cássia Zanon, Lívia Almeida. Maria de Fátima Oliva Do Coutto e Paula Diniz. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1982.
[1] Karl Popper foi, provavelmente, o mais bem-sucedido pensador do século XX a desenvolver este método de investigação baseado na tentativa de falsear e não de confirmar as hipóteses sob investigação como se fazia tradicionalmente. A esse respeito, ver: POPPER, Karl R. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade Brasília, 1980.
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