Globalização remodelada pela pandemia[1]
Agenda de mudança climática ganhou relevo
Produção doméstica deve ter mais destaque
Otaviano Canuto[2]
O comércio mundial mergulhou durante a pandemia global. Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), o volume do comércio mundial de mercadorias deve cair em mais de 9% esse ano, seguindo-se um aumento em torno de 7% em 2021. O comércio de mercadorias deverá permanecer bem abaixo de sua trajetória anterior, que por sua vez já era menos exuberante do que foi nas décadas que precederam a crise financeira global em 2008.
A crise da Covid-19 trouxe uma série de restrições comerciais, ainda que muitas tenham se revelado temporárias. Muitos países reagiram na fase inicial da pandemia endurecendo restrições comerciais às exportações de alguns produtos médicos e alimentícios. Em meados de abril, mais de 80 países estavam impondo proibições de exportação de alimentos, dispositivos médicos e equipamentos de proteção individual usados para conter a disseminação do vírus.
Muito se tem discutido sobre a hipótese de que a experiência global com a pandemia poderia acentuar tendências subjacentes a um retrocesso da globalização comercial via cadeias globais de valor. Assistimos a um renascimento das discussões sobre riscos imprevistos – ou subestimados – da fragmentação internacional da produção.
Por um lado, há vozes que afirmam que a dependência do comércio deverá ser diminuída, inclusive via repatriação da produção, como forma potencial de redução de riscos. Por outro, essa contenção do comércio também criaria custos de eficiência substanciais, se for além dos fatores estruturais que explicam a evolução do comércio global antes da pandemia.
Escolhas pelos gerentes das cadeias de valor
Como aconteceu nos eventos relacionados ao tsunami no início da década de 2010, graves interrupções no fornecimento de insumos e produtos finais, desde peças automotivas e eletrônicos de consumo a equipamentos de proteção durante a pandemia, destacaram a presença de riscos de se concentrar muita produção e abastecimento em um pequeno número de locais de baixo custo, assim como na confiança no gerenciamento de estoques adotando just-in-time. Tarifas aumentadas em alguns casos, restrições de acesso a mercados e outras manifestações de atritos geopolíticos também podem levar algumas empresas a revisitar suas cadeias de abastecimento.
Em alguns casos, pode prevalecer a visão de que vale a pena adotar múltiplas fontes regionais, bem como manter mais “estoques de segurança”, mesmo que essas opções impliquem custos mais altos. Durante a guerra comercial entre China e Estados Unidos disparada pelas tarifas de Presidente Trump, o deslocamento de atividades intensivas em mão-de-obra da China por parte de investidores estrangeiros em direção a Vietnam, México e outros ocorreu com parcial duplicação de capacidades instaladas.
Os tipos e a intensidade de mudanças vão variar muito de acordo com os setores industriais, já que as empresas terão que considerar se a resiliência compensará a perda de eficiência e maiores custos. Existe uma tendência já em curso antes da pandemia, em alguns segmentos, de colocar a produção em locais mais próximos dos clientes, especialmente quando a adoção de sistemas de manufatura avançados da Indústria 4.0 for capaz de compensar os custos de mão de obra mais altos. Equipamentos médicos, produtos biofarmacêuticos, semicondutores e eletrônicos de consumo, por exemplo, são prováveis candidatos a também estarem sujeitos a pressões geopolíticas e governamentais. Em última análise, a consequência da Covid será um perfil mais elevado a ser atribuído a essas considerações, em intensidades distintas conforme setores e opções empresariais.
Políticas governamentais e atritos geopolíticos
Os governos também devem dar maior ênfase à produção doméstica para reduzir o risco de choques futuros de abastecimento, especialmente de suprimentos e equipamentos médicos. A Alemanha expressou interesse em internalizar mais cadeias de suprimentos, por exemplo, assim como a Coreia do Sul está explorando medidas para encorajar o remanejamento da produção de manufaturas. Isso não se traduzirá necessariamente em negligência total dos ganhos mais amplos com a globalização, mas reforçará seletivamente a busca por maior autossuficiência.
Dados os custos revelados – fracassos – das políticas comerciais unilaterais no estilo seguido pelo presidente Trump nos Estados Unidos, não é provável que voltem com o futuro presidente Biden. Mas pode haver esforços plurilaterais para ampliar a agenda de restrições ao comércio como um quid-pro-quo nas negociações sobre regras e padrões trabalhistas e ambientais.
No caso da alta tecnologia, uma potencial dissociação entre EUA e da China – o que pode até levar a dispositivos e sistemas de tecnologia da informação (TI) em ambos os mercados não mais interoperáveis - pode ter fortes repercussões. A China, por sua vez, emitiu sinais de busca por mais autossuficiência ao falar em “dupla circulação” externa e doméstica e ao buscar garantir maior diversidade de fontes de importação de commodities. Mais uma vez, a crise da Covid não criou tais atritos, mas deu lugar a um aumento do seu perfil.
Agenda de mudança climática
O futuro do comércio também está sendo redefinido de outras maneiras. A pandemia teve um efeito indireto positivo de aumento no relevo da agenda de mudança climática. Recuperação verde é o mote. Por exemplo, como parte da Estratégia do Acordo Verde europeu para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, a Comissão Europeia está considerando levar adiante a proposta de estabelecer um imposto sobre o carbono nas importações. Esse imposto poderia redefinir a competitividade global em uma série de setores, especialmente se acompanhado pelos Estados Unidos.
Portanto, ao intensificar forças geopolíticas e econômicas já em ação, o impacto perturbador da pandemia no comércio internacional deixará uma marca duradoura. A pandemia está acelerando a história, ou seja, algumas tendências recentes estão sendo acentuadas. A pandemia não reverterá a globalização, mas a remodelará.
Quanto ao Brasil, cabe lembrar que estamos no outro extremo em comparação com os que estão considerando “des-globalizar”, mesmo que parcialmente. Já pagamos um preço elevado por ser uma das economias mais fechadas comercialmente do mundo…
[1] Artigo publicado em Poder 360 no dia 12 de dezembro de 2020.
[2] Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo do Banco Mundial, diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e vice-presidente no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
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