A ascensão da China e alguns desafios de uma nova geopolítica
Eiiti Sato[1]
Entre os dias 18 e 24 de outubro de 2017 realizou-se o 19º congresso do Partido Comunista da China marcando o fim de um mandato de governo e o início de outro. Trata-se de um evento que se realiza a cada cinco anos e tem significado semelhante ao da cerimônia de inauguração de mandato do Presidente dos Estados Unidos, que se realiza a cada quatro anos. O próximo Congresso do PC Chinês deverá se realizar, portanto, em 2022. Tal como nos EUA, mesmo nos casos de reeleição, por ser o início de um novo mandato, o Presidente anuncia prioridades, iniciativas e os principais objetivos que sua administração pretende atingir. As semelhanças, no entanto, não vão muito além desses aspectos. No caso da China o Congresso do PC se reveste de muitos outros significados e, para a imprensa ocidental, abre espaço para muitas análises e especulações sobre a luta pelo poder, que resultou na continuidade ou na mudança do comando do Estado chinês. Nos EUA essa luta pelo poder ocorre de forma aberta durante a campanha eleitoral.
Desafios internos e o papel da revolução de Mao Tsé-Tung
A política na China está assentada sobre antigas tradições e experiências históricas radicalmente diferentes daquelas vividas pelos Estados Unidos. Ao longo do século que antecedeu a ascensão de Mao Tsé-Tung (1949-1976) a experiência política vivida pela China foi a de uma sucessão de governos notavelmente fracos em todos os sentidos. Desde o século XIX não apenas as potências coloniais mantinham formas variadas de dominação sobre a sociedade chinesa mas, mesmo no plano doméstico, sob a longa dinastia Qing, a China enfrentava sérios problemas crônicos de governabilidade. A revolta dos Boxers (1899-1901) foi uma típica manifestação desses intermináveis problemas de governabilidade. John Delury, em seu comentário publicado na revista Foreign Affairs, faz um relato dramático da situação da China que antecedeu à tomada de poder por Mao Tsé-Tung: “Nos fins do século XIX a Dinastia Qing era como um touro feroz que sangrava por todos os membros por ter sido lancetado, furado e cortado desde os anos 1830 – quando os problemas realmente se tornaram óbvios – e, no início do século XX, esperava apenas que o matador desferisse o golpe final”. Nesse sentido, a maioria dos historiadores entende que o principal legado político do período da China revolucionária de Mao Tsé-Tung foi um Estado renovado, fortalecido e bem disciplinado, em condições de manter unidas as províncias e as lideranças locais, além de manter as questões domésticas fora da ingerência das grandes potências. Sob o comando absolutista de Mao Tsé-Tung e do Partido Comunista Chinês, as instituições do Estado e seus governantes recobraram a autoridade e o controle da ordem política a ponto de fazer com que o Governo Central fosse capaz de elaborar e implementar políticas estruturadas e eficazes com o objetivo de promover uma modernização ampla, rápida e consistente para toda a China. Em outras palavras, do ponto de vista da teoria política, nas três décadas em que Mao Tsé-Tung comandou o governo com mão de ferro, a China viveu algo parecido com o que os governos absolutistas fizeram na Europa nos séculos XVII e XVIII que reconstruíram a ordem nos principais reinos da Europa.
A China na ordem internacional
Quando Mao Tsé-Tung, à frente do Partido Comunista, tomou o poder na China em 1949, tornando-se “O Grande Timoneiro” da nação chinesa, o país rompeu as relações que mantinha com as potências ocidentais, que consideravam o comunismo um regime hostil a ser combatido. A China representada na ONU era a República Nacionalista da China comandada por Chiang Kai-Shek, que havia se refugiado em Taiwan desde que suas forças haviam sido derrotadas por Mao Tsé-Tung. A China permaneceu fechada ao mundo até os fins da década de 1960 quando, no plano doméstico, o governo de Mao Tsé-Tung atingia seu esgotamento e, na cena internacional, começava a emergir a política da détente em substituição à guerra fria.
Entre os articuladores da détente destacava-se a figura de Henry Kissinger. Seu “realismo político” podia ser simplificadamente resumido na seguinte fórmula: embora tenhamos grande superioridade tanto na economia quanto na capacidade militar, no mundo de hoje o emprego da força tem limites morais que não podem ser ultrapassados; assim, embora não gostemos do comunismo e os países comandados pelos comunistas nos odeiem, não podemos eliminar um ao outro, e uma guerra entre os dois campos é uma hipótese inaceitável; em conclusão, só nos resta uma alternativa, que é a de desenvolver uma política de convivência e de tolerância mútua.[2] Após duas décadas de guerra fria, em que hostilidades e ameaças geravam tensões entre as potências do mundo liberal-capitalista e do bloco comunista, mas que se revelavam cada vez menos produtivas, o pensamento realista ganhou força nos EUA, especialmente após o envolvimento dos EUA na guerra no Sudeste asiático cuja impopularidade tornava-se crescente. Assim, é natural que em relação à China, num ambiente internacional marcado pela détente, estrategistas como Kissinger passassem a buscar novas visões e orientações para a política internacional. Nesse quadro, esses estrategistas passaram a identificar ao menos duas oportunidades a serem exploradas: 1) aumentar a fragmentação do bloco comunista sob a liderança da URSS e reduzir sua área de influência fora do bloco; 2) liderar a incorporação de um imenso mercado de um bilhão de pessoas até então virtualmente inexplorado. Mais tarde, especialmente após a ascensão de Deng Xiaoping, um terceiro desenvolvimento passou a ser esperado e mais visível nas manifestações dos estrategistas das potências ocidentais como resultado da incorporação da China à ordem econômica internacional: a democratização do sistema político chinês. Na medida em que os investimentos, sobretudo americanos, fluíam para a China, fortalecia a crença de que a modernização e o desenvolvimento econômico iriam provocar uma mudança no regime político da China. Acreditava-se que o desenvolvimento econômico traria como consequência a formação de uma crescente classe média instruída e de empresários abastados que, ao se tornarem mais afluentes e poderosos, passariam a contestar de forma cada vez mais insistente o regime autoritário e centralizador comandado pelo Partido Comunista Chinês.
O processo de abertura da China para o mundo teve seu início em abril de 1971. A equipe de jogadores de ping-pong dos EUA estava no Japão por ocasião do campeonato mundial de tênis de mesa quando recebeu o inesperado convite para participar de torneios desse esporte na China. Tendo em vista o ambiente da détente e o fato de que a Revolução Cultural chinesa havia chegado ao fim, o convite se afigurou muito atraente e, dias depois, a delegação americana de ping-pong cruzou a ponte de Hong Kong, tornando-se os primeiros americanos a visitar a China após a Revolução de 1949. Além dos americanos, atletas da Inglaterra, do Canadá e da Colômbia também foram convidados. As partidas amistosas realizaram-se em ambiente de grande cordialidade entre os dias 11 e 17 de abril de 1971 e, além dos jogos, realizaram treinos em conjunto e visitas a palácios e a locais turísticos chineses.
A revista Time destaca na capa a visita da delegação americana à Muralha da China: “China: um jogo totalmente diferente” diz a manchete. Richard Nixon e Mao Tsé-Tung finalmente se encontram em Pequim, em 29 de fevereiro de 1972.
A diplomacia de aproximação da China com o Ocidente ganhou momento rapidamente. Ainda em 1971, os EUA levantaram o embargo a produtos chineses, que durava mais de 20 anos e organizou-se uma visita de Henry Kissinger, então Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon, à China e, logo em seguida, o próprio presidente Nixon visitaria o país de Mao Tsé-Tung, em fevereiro de 1972. O governo Chinês tentava assim ampliar ainda mais o alcance de sua “Diplomacia do Ping-Pong”. Foi nesse ambiente que ocorreu a substituição da China Nacionalista de Chiang Kai-Shek pela China de Mao Tsé-Tung na ONU, e a própria saída dos EUA do Vietnã foi uma hipótese que se fortaleceu muito após essa aproximação da China com o Ocidente. Com efeito, várias missões de especialistas americanos e britânicos foram organizadas para visitar e discutir com as lideranças chinesas o avanço da integração da China à ordem internacional tanto na política quanto na economia e na cultura.
Foi nesse ambiente que o governo Mao Tsé-Tung chegou ao fim e, após sua morte em 1976, a luta pelo poder que se seguiu acabou sendo vencida por Deng Xiaoping, que fora sempre um desafeto do grupo liderado por Mao Tsé-Tung. Essa mudança foi bastante importante pois, sob muitos aspectos, o grupo de Mao Tsé-Tung representava a corrente mais radical e ortodoxa do marxismo-leninismo revolucionário, enquanto Deng Xiaoping havia sido perseguido e banido da política por suas ideias pouco ortodoxas. Na realidade, em 1976, Deng Xiaoping foi expurgado novamente e mantido em prisão domiciliar, mas, ainda no mesmo ano, com a morte de Mao Tsé-Tung, Deng Xiaoping voltou a ocupar posição de destaque no Partido Comunista. Finalmente estava aberto o caminho para tornar-se em 1978 o novo líder da China em condições de realizar as transformações na ordem política e lançar a nação chinesa no caminho da integração à ordem econômica internacional.
O papel do Partido Comunista e da ideologia
Um ponto inicial a ser considerado é que a revolução de Mao Tsé-Tung causou muito menos comoção no Ocidente do que a tomada do poder por Lênin e pelos comunistas na velha Rússia. O distanciamento geográfico e cultural e o ambiente internacional marcado pelos esforços de reconstrução do pós-guerra foram importantes, mas também foi importante o fato de que as perseguições e a eliminação dos opositores da revolução na Rússia atingiram diretamente tradicionais famílias da nobreza europeia. Embora as famílias da nobreza russa não estivessem tão ligadas com a nobreza europeia quanto estavam a nobreza francesa, a alemã ou a austríaca, havia de fato muitas ligações familiares. Por exemplo, Nicolau II, além de Czar da Rússia, ostentava vários outros títulos tais como o de Rei da Polônia, Grão-Duque da Lituânia, Grão-Duque da Finlândia e Grão-Duque de Oldemburgo, que decorriam de casamentos entre seus antepassados com membros da nobreza europeia. Assim, quando Lênin e seus revolucionários eliminaram a família Romanov e muitas outras famílias da nobreza da Rússia, atingiram parentes de influentes famílias europeias. Ou seja, diferentemente da Rússia, o interesse pela China, ou pelos excessos revolucionários de Mao Tsé-Tung, não despertavam o mesmo interesse na imprensa e na opinião pública das potências ocidentais. Por vezes, à distancia, os acontecimentos na China podiam até mesmo assumir um tom romântico como foi o caso do cineasta francês Jean-Luc Goddard. Seu filme “La Chinoise” foi visto com grande interesse por muitos círculos intelectuais no Ocidente. Em La Chinoise os excessos da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung não são objeto de crítica ou mesmo de qualquer consideração moral. Na realidade, à época, havia se formado uma corrente maoista entre os militantes de esquerda na Europa e em outras partes do Ocidente capitalista, que viam na Revolução Cultural e nas ações violentas do Khmer Rouge no Camboja, uma renovação do fervor revolucionário do movimento comunista internacional.[3]
Um outro elemento pouco lembrado mas importante para se compreender a meteórica ascensão da China na ordem internacional, é o fato de que em sua constituição nacional, mesmo tendo sido concebida nos anos revolucionários, a China jamais extinguiu instituições centrais do capitalismo. Com efeito, na constituição produzida sob o comando do Partido Comunista da China (PCC) em 1954, a propriedade privada não fora abolida e admitia até mesmo a existência de “capitalistas”. No Artigo 5º, a constituição chinesa de 1954 declarava: “Na República Popular da China existem atualmente as seguintes formas fundamentais de propriedade dos meios de produção: a propriedade do Estado — isto é: a propriedade de todo o povo —; a propriedade cooperativa — isto é: a propriedade coletiva dos trabalhadores —; a propriedade dos trabalhadores individuais; e a propriedade dos capitalistas.” Vale reproduzir também trechos do Artigo 10º dessa constituição onde se explica como deve ser entendida a propriedade do capital e seu uso: “… Mediante a direção exercida pelos órgãos administrativos do Estado, a direção exercida pelo setor estatal e o controle por parte das massas trabalhadoras, o Estado aproveita o papel positivo da indústria e do comércio capitalistas, que é útil ao bem-estar nacional e à prosperidade do povo; limita seu papel negativo, que prejudica o bem-estar nacional e a prosperidade do povo; estimula e orienta sua transformação em setor do capitalismo de Estado, sob diferentes formas, e substitui gradualmente a propriedade dos capitalistas pela propriedade de todo o povo”.
Em um sentido geral, observa-se muitas diferenças importantes na trajetória política percorrida pela China e pela URSS. Diferentemente da constituição produzida por Mao Tsé Tung, a constituição soviética abolia e confiscava a propriedade privada e, no geral, os termos da constituição procurava reproduzir os princípios básicos da doutrina marxista tradicional. Dessa forma, é possível entender que, mesmo sem as reformas introduzidas por Deng Xiaoping (1978-1992), legalmente a ordem econômica na China não proibia nem o lucro e nem a existência de propriedade privada, inclusive para o capital, fato que se revelaria essencial para a ascensão econômica da China na economia mundial. Em larga medida, esse fato também é revelador do entendimento de que as reformas introduzidas por Deng Xiaoping relacionavam-se basicamente com a forma de ver e de exercer o poder e não com eventuais elementos doutrinários. A ascensão de Deng Xiaoping marca a emergência de uma nova visão sobre a nação chinesa e suas relações com o meio internacional, em especial no que tange ao trato com o capital estrangeiro. Popularizou-se a frase atribuída a Deng Xiaoping “não importa se o gato é preto ou branco, desde que pegue os ratos” que, no fundo, reflete bem esse fato de que as mudanças formais trazidas pelas reformas de Deng Xiaoping não foram, nem de longe, tão importantes quanto as mudanças na atitude e na forma de conduzir o Estado Chinês. De acordo com a constituição não havia qualquer problema em utilizar o capital e incentivar o lucro, mesmo que se tratasse de capital estrangeiro.
Na realidade, a história tem mostrado que as atitudes dos governantes, assim como suas políticas postas em prática, geralmente são bem mais importantes na formação de focos de tensão ou de programas de cooperação internacional do que ideologias expressas em documentos oficiais. Com efeito, durante a maior parte da Idade Média, os reinos europeus eram todos católicos, mas esse fato não impedia que o comportamento de governos e de governantes variassem dentro de um amplo espectro de possibilidades. Além de interpretar à sua maneira a doutrina cristã, os governantes podiam ser sensatos, benevolentes e sábios ou podiam ser tiranos e ambiciosos, ou ainda podiam ser egoístas e presunçosos e inseguros em suas decisões. Ou seja, reinos, ducados e baronatos guerreavam entre si por direitos de sucessão, por ofensas e injúrias, por ambições de governantes ou por quaisquer outras motivações que frequentemente movem povos e governantes até os dias de hoje. Nesse sentido, pode-se dizer que o autoritarismo do regime na China hoje apresenta muito mais semelhanças com o absolutismo dos regimes praticados na Europa nos séculos XVII e XVIII do que com aquele praticado pelo próprio Mao Tsé-Tung. Aliás, nos dias de hoje, o culto à memória de Mao Tsé-Tung tem se restringido a pouco mais do que manter seu mausoléu e promover, organizadamente, as visitas como a qualquer outro ponto turístico da China. Em outras palavras, mesmo dentro de uma mesma ideologia, seja ela laica ou religiosa, Estados e nações podem apresentar comportamentos e práticas muito diferentes, dependendo de muitos fatores, em especial do conjunto de virtudes, de qualidades e das percepções de seus governantes.
A política da détente foi praticada tanto pelas nações líderes do Ocidente quanto pela URSS, pelos países do Leste Europeu e pela China nas décadas de 1970 e 1980. Nesse quadro a URSS e os países do Leste Europeu tiveram seu regime baseado no marxismo abalado até seu colapso final. Os fatos mostram que o colapso da ordem política na URSS, e nos países liderados por ela, foi motivado essencialmente pela evolução do quadro político e econômico da própria URSS e não em decorrência da détente ou de eventuais transformações ocorridas nas visões ideológicas de seus governantes. Ou seja, a ascensão de Mikhail Gorbachev deveu-se essencialmente ao fracasso econômico da URSS que, diante das dificuldades, se viu forçada a buscar alguma saída para essas dificuldades. As velhas e tradicionais lideranças soviéticas não se mostravam nem capazes e nem dispostas a buscar novos caminhos. Os principais estudiosos da mudança de regime na URSS concordam que a perda da força da ideologia comunista, tanto dentro da URSS quanto na esfera internacional, acompanhou a deterioração das condições econômicas da URSS. Com efeito, a saída das forças militares soviéticas da República Democrática da Alemanha após a queda do Muro de Berlin fora notavelmente melancólica. No ambiente de celebração da queda do Muro de Berlin, os soldados soviéticos, até mesmo os oficiais de alta patente, sem receber seus soldos, ou cujos valores reais estavam completamente deteriorados, vendiam emblemas e peças de seus uniformes como souvenirs para turistas e para os eufóricos alemães que celebravam o fim daquele símbolo da divisão da nação.[4]
Na China vem ocorrendo o contrário. O fortalecimento da economia chinesa tem fortalecido o poder concentrado no Partido Comunista Chinês. A elite governante percebeu a importância do papel desempenhado pelo PCC na manutenção da estabilidade e da ordem na nação chinesa. O próprio Deng Xiaoping, mesmo banido e preso por ordem de Mao Tsé-Tung, jamais deixou de ser filiado ao Partido Comunista. Essa elite percebeu que o PCC tinha se constituído numa formidável máquina burocrática com instrumentos operacionais capazes de manter a ordem e a autoridade sobre todo o território chinês com todas as suas particularidades e diferenças. Com efeito, embora os Han constituam a maioria, existem na China dezenas de etnias como os Mongóis, os Uiguris e os Tibetanos, que são bastante distintas em termos de costumes e até da língua falada nessas regiões. Algo bastante estranho para o Brasil, cujo território, apesar de tão extenso quanto o da China, apresenta uma população onde as diferenças regionais nem de longe se apresentam tão profundas quanto as da China. Assim, o papel desempenhado pelo PCC é notável como elemento unificador capaz de administrar e de manter a ordem mesmo em uma nação tão variada. Manter uma economia organizada em condições de formular e de implementar políticas nacionais voltadas para a realização dos investimentos necessários à manutenção de elevadas taxas de crescimento econômico vai muito além das capacidades e das opiniões de lideranças individualmente consideradas. Mancur Olson ao procurar responder à pergunta “por que algumas nações são ricas e prósperas enquanto outras permanecem pobres?” concentra seus argumentos na hipótese de que a qualidade do Estado é condição necessária (embora não suficiente) para que uma nação seja próspera.[5]
O fato é que, ao contrário da URSS da década de 1980, a crescente robustez da economia chinesa vem garantindo e dando estabilidade ao poder da elite governante. Em termos teóricos é possível dizer que o melhor entendimento das bases da eficácia do PCC podem ser muito melhor compreendidas pela leitura de Max Weber do que pela doutrina exposta por Marx e Engels. Em outras palavras, objetivamente, para o PCC é irrelevante considerar o problema doutrinário implícito em sua denominação enquanto, na realidade, o verdadeiro desafio que tem sido enfrentado pelo PCC é o de substituir as poderosas dinastias que, no passado, conseguiram unificar o Império do Meio. Posto de outra forma, uma das críticas ao marxismo feitas por Norberto Bobbio, era o fato de que a doutrina marxista não incluía uma teoria do Estado, enquanto que, por outro lado, para a elite governante chinesa e para o PCC o que realmente conta é a preservação do Estado e da sua capacidade de organizar e manter a ordem em toda a nação.
Uma China Confucionista?
Nesse quadro afigura-se novamente inevitável, refletir sobre a época em que, no Ocidente, o Estado Nacional se afirmava como instituição dominante na ordem política doméstica e internacional. A noção de razão de Estado emergiu como conceito na análise política quando o Estado Nacional estava se impondo sobre as categorias políticas da ordem medieval.[6] Nas escolas, por vezes, o conceito de razão de Estado é utilizado de forma restrita como sendo o imperativo a que está sujeito o governante no sentido de usar a força e outros meios que se afigurem necessários para a manutenção do poder, apesar de tudo, o sentido é mais amplo e mais rico. Por exemplo, um dos casos mais notáveis de emprego do conceito de razão de Estado foi o do Cardeal Richelieu que comandava os rumos da política da França durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Na época, apesar de ser um dos reinos mais católicos da Europa (o próprio Richelieu era Cardeal), a França viu-se lutando contra a Espanha e o Império Habsburgo (reinos também notavelmente católicos) enquanto tinha a Suécia protestante como principal aliada. De fato, entre as disputas envolvidas na Guerra dos Trinta Anos, havia a ameaça de a França perder parte de seu território para a Espanha. Outro aspecto interessante do conceito de razão de Estado, que se aplica muito bem ao caso da China, é o da precedência da união diante de forças desagregadoras. As forças desagregadoras não precisam aparecer na forma de um movimento separatista, uma vez que o separatismo é um processo. Geralmente tem início com alguma forma de insatisfação e de tensão mal resolvida que pode derivar para a sensação de que uma região ou um grupo está sendo discriminado e negligenciado pelas autoridades do governo central. Assim, uma nação grande e multiétnica, como é o caso da China, inclusive pela sua longa história de alternância entre as forças de união e de fragmentação, é fundamental que governos e instituições sejam capazes de evitar a formação de tensões regionais e de focos de resistência que possam derivar para o separatismo. As forças regionais podem eventualmente ter bastante razão em reclamar demandas negligenciadas, mas o governo central pode estar sendo forçado a atender outras demandas que beneficiam o conjunto da nação. Nesse quadro, a máquina política do PCC tem desempenhado papel de grande relevância e ajuda a compreender a volta do confucionismo na condução da política na nação chinesa.
De uma forma bastante resumida e simplificada pode-se dizer que o confucionismo não propõe uma teoria de como uma sociedade deveria ser organizada e estruturada. O confucionismo não se baseia ou procura formular uma “teoria social ou política” que servisse como alternativa ao marxismo. Sua preocupação é com o comportamento dos homens, especialmente daqueles que ocupam posições no comando do Estado. Diferentemente da tradição ocidental de produzir tratados filosóficos sobre a vida humana e seu destino na terra e no céu, ou sobre a natureza da justiça ou ainda sobre como e porque organizar a convivência humana dessa ou daquela maneira, os escritos mais notáveis deixados pela tradição chinesa e do oriente, de uma forma geral estão expressos na forma de “sabedorias”.[7]
Em “Os Analectos” Confúcio não expõe uma doutrina sobre como a sociedade chinesa deveria se organizar, mas reflete, juntamente com seus discípulos, sobre a natureza do Estado e como um Estado pode ser bem governado. Nesse quadro destaca a importância da conduta moral, da família, do respeito às tradições e da capacidade de seus líderes em gozar da confiança de seus governados. Giorgio Sinedino, que prefacia a edição brasileira mais completa de “Os Analectos” afirma que “o confucionismo é o sangue que manteve viva a burocracia chinesa durante dois milênios”.[8] Entre os ensinamentos está o entendimento de que os símbolos de autoridade, notadamente as instituições do Estado, devem ser respeitados quase ao nível da veneração, mas para que isso ocorra é preciso que não apenas os governantes, mas que todos os que ocupam posições de autoridade nesse Estado tenham um comportamento absolutamente irrepreensível. Nos Analectos há todo um capítulo dedicado aos junzi (Sexto Rolo, capítulo 12) traduzidos como os homens nobres, isto é, aqueles que desempenham papel de liderança no trato da coisa pública. Nesses ensinamentos de Confúcio há algo parecido com a distinção que se fazia na Grécia Antiga, onde o termo idiotes não designava o imbecil ou ignorante, como hoje, mas designava aquele que se ocupava apenas de seus interesses privados. Assim, os junzi eram aqueles que, na China de Confúcio, para além das questões pessoais, eram capazes de colocar as preocupações com a cidade, com a nação, com o bem comum, acima de seus interesses individuais. Na essência, educar esses junzi era o objeto da escola que criou. Entre os cerca de 3.000 discípulos que teve ao longo de sua vida, havia estudantes oriundos de todas as camadas sociais que, no seu entender, apresentavam potencial para tornar-se um junzi, isto é, um homem nobre capaz de exercer algum papel no Estado.
O fato é que o governo chinês em 2004 criou um programa de amplitude mundial para disseminar a língua e a cultura chinesas sob a denominação de “Instituto Confúcio”. Hoje existem centenas de Institutos Confúcio espalhados pelo mundo. O financiamento do programa é feito pelo Ministério da Educação da República Popular da China e tem sede em Beijing. No Brasil já existem duas dezenas de institutos instalados em cooperação com grandes universidades e cada Instituto possui um(a) Diretor(a) indicado(a) pelo governo chinês e outro(a) Diretor(a) indicado(a) pela Reitoria da universidade local. Vale notar que desde a criação do Partido Comunista Chinês, no início do século XX, seus líderes criticaram e denunciaram Confúcio como a personificação das tradições “feudais” e retrógradas da China. Nesse ambiente criou-se um anti-confucionismo militante que se estendeu desde o Movimento da Nova Cultura (1912) até a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung. Esses fatos dão uma indicação do porque Deng Xiaoping fora perseguido antes de chegar ao poder após a morte de Mao Tsé-Tung. Afinal, se fosse mantido o credo revolucionário original do PCC, o maior programa de difusão cultural da China (soft power) ao invés de se chamar Instituo Confúcio, não deveria se chamar Instituto Karl Marx ou talvez Instituto Mao Tsé-Tung?
Uma nova ordem internacional
Como a velha sabedoria chama a atenção, todo sucesso gera problemas. Uma indústria, ao ser muito bem sucedida no lançamento de um novo produto, deve saber que, no momento seguinte, terá que administrar problemas gerados pelo sucesso. Entre outros problemas, provavelmente terá que lidar com níveis inéditos de necessidades de capital, enfrentar concorrência em mercados com os quais não está acostumado e terá que se adaptar a novos mecanismos operacionais de muito maior complexidade. Internacionalmente, a era nuclear foi produto de um notável sucesso científico e tecnológico, mas seu advento trouxe consigo ameaças inusitadas e preocupantes para toda a humanidade. Do mesmo modo, com os países, políticas bem sucedidas também trazem consigo novos problemas, especialmente em se tratando de uma nação como a China que compreende uma população de cerca de 1,3 bilhão de pessoas e uma série de diferenças regionais muito maiores e mais complexas do que as que estamos acostumados em um país como o Brasil. Além disso, a dimensão do sucesso também aponta para novos problemas a serem administrados. Por três décadas a China foi capaz de manter uma taxa de crescimento próxima de dois dígitos, que a tirou da condição de economia pobre e periférica elevando-a à condição de segunda economia do mundo, isto é, de uma grande potência em todos os sentidos. Se o sucesso gera problemas, um grande sucesso gera grandes problemas.
O pronunciamento do Chefe do Governo, Xi Jinping, dirigido aos delegados presentes no XIX Congresso do Partido Comunista (2017), apresentou uma longa lista de problemas para serem enfrentados no âmbito doméstico, que incluiu a luta contra a corrupção, a implantação mais efetiva do Estado de Direito e a promoção de mais justiça social. O objetivo implícito na decisão de priorizar o ataque a esses problemas está a preocupação em reforçar a capacidade de o Governo e o Estado conseguirem continuar exercendo com eficácia a governabilidade sobre a nação chinesa. Por outro lado, a condição de segunda potência econômica do mundo implica a necessidade de uma diplomacia capaz de administrar os inevitáveis problemas decorrentes de sua nova posição internacional. Em outras palavras, significa que a China deve estar preparada para assumir mais responsabilidades nas questões internacionais, ao menos se for consistente sua retórica de promoção de paz na forma de harmonia na ordem internacional, conforme ensinam os escritos deixados por Confúcio.
É importante lembrar que o status de grande potência não é uma condição que se pode adquirir apenas com retórica diplomática ou com formulações de política externa por parte de qualquer governo. Trata-se de reunir condições objetivas e materiais que uma nação desenvolve e que são relevantes para a ordem internacional. A história mostra que a grande potência é aquela que não pode deixar de ser – mesmo que não queira – um ator relevante na construção e no manejo dos regimes econômicos e políticos internacionais. Nesse sentido, o caso dos EUA do início do século XX é muito ilustrativo. Embora já tivesse se tornado a maior potência econômica e militar, os EUA recusaram-se a participar da Liga das Nações, um fato que os historiadores reconhecem como fator relevante para reduzir substancialmente a credibilidade e a capacidade de ação da Liga das Nações nas questões internacionais em disputa na época. Na economia, no período do entre-guerras, a recusa dos EUA em tomar parte no estabelecimento de um regime monetário internacional foi muito bem definida por H. v. B. Cleveland em seu estudo sobre o sistema monetário no período, onde concluía que aquela enorme economia desenvolvendo políticas econômicas autônomas era como “um touro se movendo na loja de porcelanas do sistema monetário mundial”.[9]
Estes são apenas dois exemplos entre os mais conhecidos que ilustram como e quanto pode ser problemática para a estabilidade da ordem internacional a não participação de forma ativa de uma grande potência nos regimes internacionais. No sentido inverso, pode-se observar o longo período de estabilidade da ordem internacional vivida após a segunda guerra mundial, quando, de um lado, os EUA decidiram de forma clara e inequívoca participar ativamente da construção e da administração dos regimes internacionais que foram criados e que evoluíram ao longo do tempo, enquanto, por outro lado, também as potências tradicionais compreenderam que essa participação ativa dos EUA era benéfica para todos. A própria ascensão da Ásia, em especial da China, deu-se dentro dos regimes internacionais criados após a Segunda Guerra Mundial. Com efeito, as potências europeias tradicionais e o Japão passaram a entender que os regimes nascentes, sob a liderança dos EUA, não ameaçavam seus interesses, mas, ao contrário, eram benéficos aos seus objetivos de buscar a prosperidade em um ambiente pacífico.
J. Mearsheimer, conhecido teórico das Relações Internacionais, dá uma explicação para um dos problemas centrais da ordem internacional: como manejar as inevitáveis mudanças na distribuição do poder mundial?[10] Ele qualifica como “trágico” o destino das grandes potências porque, em sua avaliação, as grandes potências, mesmo aquelas que estão satisfeitas em viver em paz consigo mesmas, estão fadadas a se engajarem em uma interminável luta pelo poder na esfera internacional. O que Mearsheimer está fazendo é reafirmar à sua maneira o fato de que as grandes potências não podem isolar-se e deixar de participar ativamente do processo de construção e do manejo da ordem internacional, mesmo que, por vezes essa ordem não pareça favorecer a potência dominante.
Diante desse quadro, também é preciso considerar até que ponto as grandes potências tradicionais estarão dispostas aceitar a China como um jogador cada vez mais importante no tabuleiro de xadrez da política mundial. A novidade é saber como essa possibilidade poderá ser assimilada quando, pela primeira vez na modernidade, a ordem internacional parece demandar uma efetiva cooperação entre potências de bases culturais tão distintas quanto os EUA e a China. De fato, a pragmática integração da China à economia mundial iniciada pelo próprio Mao Tsé-Tung aponta para uma questão posta diante de Xi Jinping: até que ponto uma China próspera e integrada à economia e à política mundial pode ser compatível com um Estado fechado e autoritário. O que não quer dizer que a alternativa seria um sistema político democrático à moda das democracias ocidentais, mas é fato que um sistema político e social fechado e autoritário inspira pouca confiança em qualquer plano ou programa de cooperação internacional.
Em larga medida, a desconfiança em relação a governos autoritários deriva do fato de que, em geral, governos autoritários – ainda que o autoritarismo seja exercido de forma benevolente – estão associados a um ditador que, a qualquer momento, pode deixar o poder por morte ou por um golpe de Estado. No caso da China, o autoritarismo é exercido por uma notável máquina burocrática que é o Partido Comunista da China. Tem quase 100 milhões de associados e a filiação ao partido é considerada essencial para quem quer ascender social e profissionalmente, seja na política, no mundo dos negócios ou até mesmo na área da cultura e do entretenimento. Isso vale inclusive para grandes empresários como Jack Ma, fundador da gigante do comércio eletrônico Alibaba e Ren Zhengfei, fundador da empresa de telecomunicações Huawei. Com efeito, tudo indica que o exercício do poder não deverá mudar muito, mesmo quando a liderança de Xi Jinping chegar ao fim, do mesmo modo que ocorreu quando Deng Xiaoping ou Hu Jintao deixaram o poder.
Em um sentido cultural e comportamental, a questão parece ser a de saber como será possível conciliar uma sociedade que valoriza a individualidade e os direitos individuais como elemento central da ordem social, em vista de outra sociedade centrada no entendimento de que o indivíduo só ganha sentido quando diluído em algum tipo de identidade coletiva? Quando Wittfogel formulou sua tese de que havia um “despotismo oriental” associado à construção de barragens que exigiam grandes quantidades de mão de obra e de uma burocracia estatal muito bem organizada e eficiente não havia grandes obras públicas como pontes, túneis e trens de alta velocidade, e nem terceirização da atividade industrial de produção em massa e em escala global, mas há séculos, os chineses construíram a Grande Muralha.[11] Aparentemente, o Partido Comunista Chinês percorreu uma trajetória semelhante a de Karl August Wittfogel que, quando jovem foi marxista militante, mas depois desencantou-se com a doutrina tornando-se um crítico do marxismo. Não se pode dizer que o Partido Comunista Chinês tenha se tornado um crítico do marxismo e de sua tese do igualitarismo, mas a opção do PCC pela burocracia como razão de Estado tem sido muito clara.
[1] Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
[2] Muitos observadores, equivocadamente, identificam o pensamento realista com belicosidade e com atitudes intransigentes para com os adversários. No entanto, mestres do pensamento realista como Hans Morgenthau e Kenneth Waltz eram fortes opositores do envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
[3] O filme La Chinoise data de 1967, quando Mao Tsé Tung desencadeava a Revolução Cultural (1966) que consistia numa campanha baseada no Livro Vermelho, com o objetivo de eliminar seus opositores no interior do partido e entre gente comum da sociedade que não se alinhavam com a ideologia de Mao. A campanha disseminou violência no país e resultou na morte de milhões de cidadãos chineses.
[4] Em meados da década de 1980, embora o valor do rublo soviético fosse oficialmente igual a um dólar americano, qualquer motorista de taxi de Moscou trocava um dólar americano por 10 rublos.
[5] M. Olson. Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist Dictatorships. Basic Books, 2000.
[6] O termo frequentemente é utilizado em francês (Raison d’État) por ter sido disseminado e popularizado pelo Cardeal Richelieu e por Louis XIV.
[7] O pensamento ocidental recuperou os tratados filosóficos deixados pelos antigos, especialmente pelos gregos, e deu continuidade à prática de produzir tratados filosóficos. Na alta Idade Média, pensadores como São Gregório, São Jerônimo e Santo Agostinho deram início a essa tradição. Na China os pensadores mais notáveis deixaram coleções de “sabedorias” (como a Bíblia). “O Livro do Caminho e da Virtude” de Lao Tsé “A Arte da Guerra” de Sun Tzu, e os “Analectos” de Confúcio são coletâneas de “sabedorias” e estão entre as obras mais notáveis do pensamento dentro da tradição chinesa.
[8] Confúcio. Os Analectos. Instituto Confúcio, Editora UNESP e Folha de S. Paulo, 2015 (pag. 22).
[9] H. v. B. Cleveland, The International Monetary System in the Interwar Period. In B. M. Rowland, Balance of Power of Hegemony: the Interwar Monetary System, pp. 1-59, N. York University Press, 1976. (p. 43).
[10] J. J. Mearsheimer, The Tragedy of Great Power Politics. W. W. Norton & Co. New York, 2001.
[11] Karl A. Wittfogel. The Oriental Despotism. A Comparative Study of Total Power. Yale University Press, 1957.
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