Nós do Brasil

 Nossas heranças e nossas escolhas

 

“No Brasil, o futuro de uma criança está em grande parte determinado pelas condições socioeconômicas de sua família no momento do nascimento. […] Como nascer em uma família rica ou pobre não é resultado de mérito, e sim da sorte, a loteria da vida é o principal determinante do sucesso da vida no Brasil.”

Naercio Menezes Filho

O título e o subtítulo deste pertencem ao mais recente livro de Zeina Latif. Lançado em 2022 pela Editora Record, possui uma abordagem que destoa da literatura existente sobre a economia brasileira por apresentar, simultaneamente, uma abordagem que o classificaria no subcampo da história econômica, ou seja, da formação econômica do Brasil, e no subcampo da conjuntura econômica, ou seja, da economia brasileira contemporânea.

Sua autora é doutora em Economia pela Universidade de São Paulo (USP), passou por diversas instituições financeiras, como a XP, onde foi economista-chefe, é sócia da Gibraltar Consulting Economia e articulista recorrente dos principais jornais do País, além de ser frequentemente requisitada para entrevistas na rádio, na TV e nos sites especializados da internet.

Como Zeina afirma na introdução (reproduzida na quarta capa):

Não existe uma fórmula pronta para o desenvolvimento econômico. Há experiências diferentes dos países, começando pelas heranças históricas. Ainda assim, alguns fatores se mostram empiricamente mais importantes para explicar por que alguns países ficaram ricos. Um dos objetivos deste livro é discutir em que medida o Brasil desapontou ou fracassou exatamente nos fatores associados à maior renda per capita de países desenvolvidos.

Tendo atuado por mais de trinta anos ministrando aulas de disciplinas do núcleo histórico dos cursos de graduação em Economia – História Econômica Geral, Formação Econômica do Brasil e História do Pensamento Econômico – ouso afirmar que Zeina Latif conseguiu algo muito difícil: combinar profundidade e originalidade num campo em que temos brilhantes intérpretes, entre os quais Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Celso Furtado.

Esse aspecto, que pode ser comprovado nas referências bibliográficas amplamente distintas das encontradas nas obras tradicionais e nos livros-texto adotados na esmagadora maioria de nossos cursos de graduação, não passou despercebido por Samuel Pessôa, que inicia o texto da orelha do livro com as seguintes palavras:

Zeina conseguiu. Escreveu um livro na antiga tradição de escritos sobre nossa formação, cujo exemplo mais famoso é o clássico Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. É o primeiro que conheço desta tradição, escrito por alguém que seja economista. O clássico de Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, é um livro de história econômica. Em geral, historiadores, sociólogos, antropólogos e juristas se debruçaram sobre nossas mazelas com mais latitude do que o enfoque técnico e, usualmente, mais circunscrito dos economistas. Zeina transcendeu a profissão.

Eu acrescentaria que, ao transcender à profissão, Zeina elaborou uma análise rica e abrangente, escapando da abordagem excessivamente economicista que se constitui numa armadilha de muitos economistas, em especial dos que atuam no sistema financeiro, cujas análises raramente vão além dos limites das políticas econômicas clássicas – monetária, fiscal e cambial. Trata-se, nesse sentido, de um livro escrito por uma economista que pode – e deve – ser lido por economistas e por não economistas. Uma das evidências disso é que em suas 251 páginas o livro contém apenas dois gráficos e seis pequenas tabelas.

No que se refere ao exame das razões que explicam o baixo crescimento brasileiro – sempre é bom lembrar que estamos entrando na quinta década perdida – Zeina passa por temas como educação, marco jurídico e funcionamento do Judiciário, sistema político, papel das Forças Armadas, demografia, patrimonialismo, desigualdade social, cidadania e liberdade de imprensa. Em cada um desses temas, ela faz uma verdadeira viagem partindo dos primórdios do Brasil-colônia, com sua economia baseada nos latifúndios, na monocultura e na mão de obra escrava, até os dias atuais, caracterizados por acentuada polarização político-ideológica.

Quanto ao referencial teórico-econômico, duas influências me chamaram especial atenção: (i) o legado do pensamento econômico da Cepal[1], notadamente no projeto nacional-desenvolvimentista predominante a partir do início da segunda metade do século XX que defendia a promoção da industrialização por meio do ativismo do Estado; (ii) o relevante papel das instituições para o desenvolvimento econômico, enfatizado principalmente pelo pensamento econômico neoinstitucionalista que tem em Douglass North seu expoente mais destacado, seguido por importantes autores contemporâneos como Daron Acemoglu, James Robinson e, por que não, Francis Fukuyama.

Essas influências ficam claras nas explicações de Zeina sobre a evolução das teorias de crescimento econômico. Ela afirma que “as teorias iniciais de crescimento econômico, que remontam ao período pós-Segunda Guerra Mundial, davam ênfase à necessidade de acumulação de capital – capacidade produtiva instalada e infraestrutura”. Posteriormente, acrescenta: “No final dos anos 1950 e início dos 1960, ganhou impulso na pesquisa acadêmica mundial o debate acerca da importância do capital humano ou da formação e qualidade da mão de obra para o crescimento”. Na sequência, arremata: “Os anos 1990 marcaram uma grande mudança no foco da literatura de crescimento, a partir da tese defendida por Douglass North, que apontou a importância das instituições para explicar os diferentes desempenhos econômicos dos países, estas entendidas como as regras do jogo formais (Constituição, leis) e informais (códigos de conduta, crenças) criadas pelas sociedades para delimitar as escolhas de indivíduos e atores políticos”.

A conclusão de Zeina é que “as regras do jogo precisam ser duradouras para que tenham impacto no crescimento – para o bem e para o mal. Se transitórias, são como leis que não pegam. […] O que leva as pessoas a aderirem às regras do jogo é a estrutura de incentivos, com prêmios e punições – formais (multas) ou não constrangimento moral. Os indivíduos não tomam decisões no vácuo, reagindo, pois, aos incentivos esperados por conta de suas escolhas”.

Por todas essas razões, recomendo vivamente a leitura de Nós do Brasil.

 

Referências e indicações bibliográficas 

ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Tradução de Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

BIELSCHOWSKY, R. Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988.

BIELSCHOWSKY, Ricardo (Organizador). Cinquenta anos de pensamento na CEPAL (2 volumes). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1979.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 48. ed. Rio de Janeiro: Global Editora, 2006.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003.

FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: da Revolução Industrial à globalização da economia. Tradução de Nivaldo Montigelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

LATIF, Zeina. Nós do Brasil: nossa herança e nossas escolhas. Rio de Janeiro: Record, 2022.

MACHADO, Luiz Alberto; KAHN, Tulio (organizadores). Interpretações do Brasil: Tradicionais e novas abordagens históricas, econômicas e diplomáticas. São Paulo: Scriptum Editorial, 2018.

MACHADO, Luiz Alberto; COSTA, Eduardo José Monteiro da. Cultura e desenvolvimento na visão de três grandes economistas. Em MANGUEIRA, Celso Pinto; PAIXÃO, Márcia Cristina Silva (organizadores). Celso Furtado 100 anos: coletânea de artigos em sua homenagem. João Pessoa: Editora UFPB, 2021, pp. 57-89.

NORTH, Douglass C. Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. Tradução de Alexandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2018.

[1] Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, órgão criado em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas.