Lições de viagem: Chile e Argentina
O Chile, que no recém-divulgado Relatório de Desenvolvimento Humano 2021/2022, aparece como o grande destaque da América do Sul , foi um dos países que menos tive oportunidade de visitar no referido continente. Estive lá apenas uma vez, disputando um torneio pan-americano de basquete veterano em 2002. O torneio realizou-se em Viña del Mar e tive tempo apenas de dar uma passada muito rápida em Valparaíso, Santiago e Portillo. A Argentina, ao contrário, foi o país sul-americano que mais vezes visitei, embora tenha me limitado a Buenos Aires em quase todas elas.
Nesse sentido, foi com enorme interesse e expectativa que me juntei a três vizinhos para uma viagem de carro aos dois países, num percurso de aproximadamente 10.000 km num período de vinte dias.
Embora tenhamos atravessado a fronteira em Foz do Iguaçu e pernoitado em Corrientes e Salta nas duas primeiras noites, a viagem começou a despertar real interesse na viagem de Salta para São Pedro do Atacama. Além das excelentes estradas (nesse aspecto as do Chile superam as da Argentina), paisagens espetaculares em altitudes superiores a 4.000 eram um prenúncio do que veríamos na região do Atacama.
E não deu outra. Sobrevivendo basicamente do turismo, em especial de brasileiros, o lugar é encantador. A região se constitui na terceira maior área desértica do mundo, porém a elevada altitude dá à paisagem um toque especial, combinando clima seco, uma temperatura que oscila acentuadamente durante o dia e um vento que, em alguns lugares e momentos, é de arrepiar.
Difícil indicar a mais espetacular entre tantas atrações: do Valle de La Luna, onde foram rodados trechos de Guerra nas Estrelas por sua semelhança com a paisagem lunar; passando pelos gêiseres de Tatio; pelas lagoas altiplâncas; pelos banhos em águas termais; ou pelos inúmeros salares, cada um deles habitado por animais típicos como guanacos, vicunhas, lhamas, flamingos e outros pássaros que conseguem se adaptar às condições climáticas locais.
Ainda extasiados com as belezas do Atacama, pegamos a estrada em direção ao sul.
Depois de mais de seis horas de paisagem absolutamente desértica (cuja única atração é a escultura “Mano del Desierto”, na Rodovia Panamericana, cerca de 75 km ao sul de Antofagasta, esculpida por Mario Irarrázabal, o mesmo arquiteto da conhecida “Los Dedos”, em Punta del Este, no Uruguai), chegamos a Copiapó, localidade em que aconteceu o soterramento de 33 mineiros chilenos, esplendidamente mostrado no filme Os 33, que tem no elenco, entre outros, Antonio Banderas, Juliette Binoche e o brasileiro Rodrigo Santoro.
Além das ótimas rodovias, chamaram nossa atenção as plantas fotovoltaicas repletas de placas de energia solar e os enormes cataventos geradores de energia eólica espalhados em diversos trechos da estrada e a numerosa quantidade de bandeiras do Chile, desfraldadas em casas, empresas, organismos como postos de gasolina (raros), postos policiais e canteiros de obras.
Viña del Mar, que eu havia visitado há 20 anos, me surpreendeu pelo crescimento verificado ao longo desse período, sobretudo no que se refere ao surgimento de edifícios de alto padrão na região que se estende pelas praias de Reñaca e Con Con. Novos shopping centers e restaurantes próximos ao Cassino também chamaram a atenção, dando à cidade um ar de metrópole, e não um mero local para fins de semana. A expressiva presença de bandeiras do Chile em todas as localidades, reforçou a impressão causada anteriormente.
Em Valparaíso, cidade portuária encostada em Viña del Mar, não percebi grandes novidades. A paisagem continua marcada pelas ladeiras íngremes com muitas casas de lata pintadas por grafites e, no meio delas, “La Sebastiana”, uma das residências de Pablo Neruda, parada obrigatória de turistas de todo o mundo que visitam o lugar. Novidade mesmo foi o terremoto de 4,3ᵒ na escala Richter, que nos surpreendeu numa das duas noites em que lá pernoitamos.
Prosseguindo na viagem em direção a Mendoza, já na Argentina, não há como omitir os “caracoles”, sequência de 26 curvas acentuadas na chegada à estação de esqui de Portillo, com as belíssimas paisagens dos picos nevados dos Andes.
Infelizmente, tivemos poucas oportunidades de interagir com chilenos, para trocar ideias sobre a situação vivida pelo país. Nas raras chances que se apresentaram – ou pelos noticiários de televisão – pudemos constatar a elevada preocupação com a inflação (que está atingindo o nível mais alto desde que a estabilidade foi obtida no governo Pinochet), com as incertezas da política (durante nossa estada a proposta de nova constituição foi rejeitada por ampla margem), e com algumas iniciativas do presidente Gabriel Boric, de 35 anos, de tendência socialista, eleito em dezembro de 2021 para suceder o conservador Sebastián Piñera.
Alguns chilenos – em especial da elite – que nos procuraram para saber como transcorria o período pré-eleitoral no Brasil, confessaram seu arrependimento por não terem comparecido à eleição no Chile, onde a presença às eleições não é obrigatória.
Passada a fronteira que fica imediatamente após o Hotel Inca Lodge, percorremos cerca de trezentos quilômetros até Mendoza, cidade conhecida como a “capital mundial do Malbec”, em decorrência da excepcional qualidade dos vinhos lá produzidos com a referida uva.
Mendoza, cuja economia gira em torno dos vinhos e azeites e dos turistas que acorrem de diversas partes para conhecer, consumir e adquirir seus produtos, reflete um aspecto também perceptível a quem vai a Buenos Aires nos dias atuais. Apesar da enorme dificuldade econômica atravessada pela Argentina, cuja inflação anual está em torno de 60%, a enorme disparidade de renda (talvez menos acentuada que a brasileira) e o alto nível de desemprego não impedem que os principais restaurantes e cafés estejam sempre cheios. Ainda que entre os frequentadores exista um número considerável de brasileiros que têm viajado em grande volume para aproveitar o câmbio favorável, há muitos argentinos também, que não abandonam o agradável hábito de se alimentar bem e – os que podem – de continuar viajando para diversos países do exterior, com destaque para o Brasil.
A estrutura turística criada pelas vinícolas mais importantes é impressionante. A combinação visita às instalações + degustação + alta gastronomia não fica nada a dever às similares francesas, italianas, chilenas ou sul-africanas. Algumas mais conhecidas como Catena e Zuccardi só aceitam reservas para a segunda quinzena de outubro, para frustração de muitos visitantes que chegam à cidade com a esperança de conhecê-las.
Saindo de Mendoza iniciamos o trajeto de retorno, subindo em direção a La Rioja, onde mais de 1.500 brasileiros cursam medicina na Universidad Nacional de La Rioja (UNLaR, que é pública).
A etapa seguinte, Cafayate, já na província de Salta, encanta pela arquitetura colonial de suas casas, hotéis e sedes de vinícolas, constituindo-se numa agradável surpresa para os visitantes. Cafayate é atualmente a segunda região produtora de vinhos da Argentina (perdendo apenas para Mendoza). A região já tem tradição e reputação no mundo da viticultura. É conhecida por ter os vinhedos mais elevados do mundo – as uvas são plantadas a mais de 1.500 metros do nível do mar, algumas chegando a mais de 3.000 metros. A altitude, o solo, o clima seco e as noites frias resultam em vinhos bem estruturados e intensos. As castas são Cabernet Sauvignon, Shyraz, Malbec e Tannat, mas a principal é a Torrontés, que produz vinhos brancos aromáticos e refrescantes.
Imperdível também é o passeio à Quebrada de las Conchas, uma reserva natural com formações rochosas de tirar o fôlego.
Nas estradas, em especial a Ruta 40, que corta a Argentina de norte a sul, merecem realce especial as magníficas paisagens proporcionadas pela Cordilheira dos Andes e as sucessivas retas que, em muitos casos, superam 10 km de extensão.
A esse respeito, vale um registro para o trajeto de Cafayate e Corrientes, notadamente às acentuadas mudanças de paisagens em seu trecho inicial. Saindo de Cafayate, subimos uma distância considerável cortando a Cordilheira dos Andes, num cenário semidesértico repleto de cactos. Segue-se uma etapa intermediária, em que são identificadas pequenas criações de gado e cavalos, na qual predomina uma vegetação rasteira. Logo em seguida, há uma extensa e íngreme descida, repleta de curvas, sendo a estrada ladeada por frondosa vegetação. Esse belo cenário se estende até o fim da serra, que coincide com a chegada à província de Tucuman. A partir daí alternam-se centros industriais e vastas extensões de terras cultivadas. A parte final da viagem transcorre dentro da província do Chaco, que não oferece grandes atrações. .
A última etapa em terras argentinas foi em Corrientes, cidade situada a cerca de 620 km de Foz do Iguaçu, que é a capital e principal centro social e econômico da província homônima. Tendo na administração pública sua principal atividade, Corrientes se sobressai também como centro universitário e por seus centros de saúde. A atração mais importante, que se tornou uma espécie de emblema da cidade, é a Avenida Costanera, às margens do Rio Paraná, que atrai pessoas de todas as idades para andar por suas largas calçadas, além de possuir diversos restaurantes dignos de elogios por suas instalações e ótima culinária, a preços muito acessíveis em comparação com os brasileiros de qualidade similar.
Como no Chile, não tivemos muitas chances de conversar com argentinos, mas é notória a preocupação com a situação econômica do país e a desilusão com o governo do presidente Alberto Fernández, cuja popularidade encontra-se em nível bastante baixo. Num país dominado politicamente pelos peronistas do Partido Justicialista, percebe-se claramente o temor representado pela ameaça de uma derrota nas próximas eleições presidenciais a se realizarem em 2023.
Um último registro fica para as espetaculares estradas do noroeste de São Paulo e do norte do Paraná, não só pela excelência do leito carroçável e da infraestrutura, com ótimos postos de serviços, restaurantes e lanchonetes, mas, sobretudo, pela magnífica paisagem marcada por terras integralmente cultivadas, evidência de uma agricultura altamente desenvolvida na qual se vê muita tecnologia embarcada. Nossos cumprimentos aos agricultores e pecuaristas brasileiros e à Embrapa e outras instituições de pesquisa que foram capazes de transformar o agronegócio brasileiro em referência mundial.
Em conclusão: uma viagem é mais do que uma atividade ou um passatempo; é uma excelente escola, cujas lições ficarão para sempre gravadas na memória dos que tiverem o privilégio de realizá-la.
Referências webgráficas
GALVÃO JR., Paulo. O Novo Relatório de Desenvolvimento Humano. Disponível em http://www.souzaaranhamachado.com.br/2022/09/o-novo-idh/.
PNUD. The Human Development Report 2021/2022. Disponível em: hdr2021-22pdf_1.pdf (undp.org). Acesso em: 09 de setembro de 2022.
Referências cinematográficas
Título: Guerra nas estrelas
Título Original: Star Wars
Direção: George Lucas
Elenco: Mark Hamill, Harrison Ford, Carrie Fisher, Alec Guiness
Ano de produção: 1977
Duração: 121 min
Título: Os 33
Título Original: The 33
Direção: Patricia Riggen
Elenco: Antonio Banderas, Juliette Binoche, Rodrigo Santoro, Naomi Scott, Lou Diamond Phillips
Ano de produção: 2015
Duração: 127 min
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