Daniel Kahneman e hemisférios cerebrais

Uma analogia

 

“A vida cotidiana é o reflexo da atividade do cérebro a cada instante, a cada dia.”

Suzana Herculan-Houzel

 

Na reunião semanal do Espaço Democrático realizada no dia 9 de maio, o professor Roberto Macedo fez uma exposição sobre economia comportamental e, nela, destacou  duas importantes contribuições: de Daniel Kahneman e de Richard Thaler, ambos contemplados com o Prêmio Nobel de Economia, o primeiro em 2002, o segundo em 2017.

Do psicólogo Daniel Kahneman, Macedo mencionou o livro Rápido e devagar, no qual é apresentada a teoria dos dois sistemas. De acordo com Kahneman (2012, p. 29), utilizamos dois sistemas para nossos julgamentos e escolhas:

        • o Sistema 1, que opera automática e rapidamente, com pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário.
        • o Sistema 2, que aloca atenção às atividades mentais laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos. As operações do Sistema 2 são muitas vezes associadas com a experiência subjetiva de atividade, escolha e concentração.

Feito esse esclarecimento, prossegue Kahneman (2012, p. 29):

Os nomes de Sistema 1 e Sistema 2 são amplamente utilizados em psicologia, mas vou mais longe do que a maioria neste livro, que pode ser lido como um psicodrama com dois personagens.

Quando pensamos em nós mesmos, nos identificamos com o Sistema 2, o eu consciente, raciocinador, que tem crenças, faz escolhas e decide o que pensar e o que fazer a respeito de algo. Embora o Sistema 2 acredite estar onde a ação acontece, é o automático Sistema 1 o herói desse livro. Descrevo o Sistema 1 como originando sem esforço as impressões e sensações que são as principais fontes das crenças explícitas e escolhas deliberadas do Sistema 2. As operações automáticas do Sistema 1 geram padrões  de ideias surpreendentemente complexos, mas apenas o Sistema 2, mais lento, pode construir pensamentos em séries ordenadas de passos. Também descrevo circunstâncias em que o Sistema 2 assume o controle. dominando os irrefreáveis impulsos e associações do Sistema 1.

De Richard Thaler, Macedo realçou o fato de que mudanças de comportamento podem muitas vezes ser alcançadas apenas com o correto desenho e aplicação de nudge, definido por Fernando Meneguin e Flavia Ávila da seguinte maneira no capítulo de sua autoria no livro Guia de economia comportamental e experimental (2015, p. 212):

Um nudge é um aspecto da arquitetura de escolha que altera o comportamento das pessoas de uma forma previsível, sem criar proibições ou alterar os incentivos econômicos. Por exemplo, colocar as frutas da lanchonete da escola em uma prateleira que fique no nível dos olhos dos alunos, de forma que eles comprem e comam mais frutas, é um nudge. Por outro lado, criar uma regulamentação que encareça ou obrigue o banimento de comidas não saudáveis nas lanchonetes não é”.

Outro exemplo da aplicação de nudge na administração pública ocorreu num município português por meio de uma mudança legislativa. De acordo com a legislação local pré-existente, um indivíduo só era considerado doador de órgãos se fizesse uma declaração explícita nesse sentido. Como poucos o faziam, o número de doadores era muito limitado. Com a contribuição de especialistas em economia comportamental, os parlamentares aprovaram uma mudança na legislação, de tal forma que qualquer indivíduo passou a ser considerado doador, a não ser que fizesse uma declaração em contrário. Graças a essa mudança (nudge), o número de doadores aumentou consideravelmente.

A exposição do professor Macedo levou-me imediatamente a refletir e fazer uma analogia com um dois primeiros ensinamentos obtidos a partir do momento em que passei a me interessar pelo tema da criatividade, ao participar, em 1993, de um grande evento voltado à solução criativa de problemas, realizado no campus de Buffalo da New York State University. No referido evento, pude conhecer as ideias de renomados especialistas, como Alex Osborn (que incorporou, por meio do brainstorming, as noções de pensamento convergente e divergente anteriormente desenvolvidas por J. P. Guilford), Edward de Bono e Paul Torrance, que insistiam na necessidade de ter noções básicas sobre a constituição e o funcionamento do cérebro para uma melhor compreensão da criatividade.

Dos conhecimentos obtidos nessa época, estava o de que o cérebro humano é dividido em dois hemisférios, ligados por um corpo caloso, cada um responsável por determinadas habilidades, como pode ser visto na figura 1.

Figura 1

No que se refere ao processo de solução de problemas, há diversas linhas de pesquisa que desenvolvem modelos próprios de solução criativa de problemas. O traço comum a alguns desses modelos, como o CPS e o Design Thinking, é a aceitação da divisão do cérebro humano em dois hemisférios, como visto na figura 1, sendo o esquerdo ligado ao pensamento linear (convergente ou vertical) e o direito ao pensamento não linear (divergente ou lateral).

Embora não se trate de uma unanimidade[1], observa-se, principalmente no caso de problemas complexos que exigem várias etapas para sua solução, que muitos desses modelos partem da mesma premissa, qual seja, buscar primeiro uma grande quantidade de opções, utilizando, para tanto, o pensamento divergente (não linear ou lateral), situado no hemisfério direito do cérebro  para, só então, se preocupar com a escolha da opção mais adequada, preocupando-se com o fator qualitativo, utilizando, então, o pensamento convergente (linear ou vertical), situado no lado esquerdo do cérebro.

Fazendo uma analogia, que se constitui num dos métodos recomendados pelos especialistas para o desenvolvimento do potencial criativo, considero plausível supor que o Sistema 1 de Kahneman, automático e rápido, utiliza mais diretamente o hemisfério direito do cérebro, relacionado ao pensamento não linear, divergente ou lateral, enquanto o Sistema 2, racional e lento, utiliza mais diretamente o hemisfério esquerdo do cérebro, relacionado ao pensamento convergente,  linear ou vertical.

 

[1] Edward de Bono chamou a atenção para o risco envolvido em levar ao exagero essa divisão entre hemisfério esquerdo e hemisfério direito. No livro Criatividade levada a sério afirma (pp. 32-33): “A simplicidade geográfica de hemisfério direito/hemisfério esquerdo tornou essa divisão muito atraente – ao ponto de quase haver um racismo hemisférico: ‘Ele usa demais o hemisfério esquerdo…’; ‘Precisamos para isto de uma pessoa com mais hemisfério direito…’; ‘Nós a contratamos para trazer um pouco de hemisfério direito para essa questão…’. Embora a notação esquerdo/direito tenha algum valor para indicar que nem todo pensamento é linear ou simbólico, a questão tem sido exagerada ao ponto de ser perigosa e limitadora, causando grandes danos à causa da criatividade. […] O hemisfério direito pode permitir uma visão mais holística, ao invés de construir as coisas ponto por ponto. Tudo isso tem valor, mas quando chegamos ao envolvimento da criatividade na mudança de conceitos e percepções, não temos opção a não ser usar também o hemisfério esquerdo, porque é lá que são formados e alojados os conceitos e as percepções. É possível ver quais partes do cérebro estão funcionando em determinado momento por meio de um exame TEP (Tomografia de Emissão Positiva). Pequenos lampejos de radiação, captados em filme, mostram a atividade. Parece claro que, quando uma pessoa está empenhada em pensamento criativo, ambos os hemisférios estão ativos ao mesmo tempo, como seria de se esperar”.

 

Referências

ÁVILA, Flávia; BIANCHI, Ana Maria (organizadores). Guia de economia comportamental e experimental. Tradução de Laura Teixeira Motta e Paulo Futagawa. Revisão de Taís Rocha. São Paulo: EconomiaComportamental.org, 2015.

DE BONO, Edward. Criatividade levada a sério: como gerar ideias produtivas através do pensamento lateral. Tradução de Nivaldo Montigelli Jr. Supervisão técnica de Gisela Kassoy. São Paulo: Pioneira, 1994.

HOUZEL, Suzana Herculano-. O cérebro nosso de cada dia: descobertas da neurociência sobre a vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2002.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

OSBORN, Alex F. O poder criador da mente: Princípios e processos do pensamento criador e do “brainstorming”. Tradução de Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA, 1975.