Invisíveis
“Ao focar nas habilidades e não nos estereótipos, as empresas podem focar nos talentos e habilidades das pessoas com deficiência, criando um ambiente inclusivo e propenso à inovação.”
Em 2002, ministrei a palestra “Criatividade e Aprendizagem Acelerada” na quarta edição do Fórum Internacional de Processo Criativo, realizado em Aracaju. O referido evento, que posteriormente passou a ser chamado de Fórum Internacional de Criatividade e Inovação, era promovido anualmente pela Fundação Brasil Criativo e por muito tempo transformava Aracaju, nos dias em que era realizado, na capital brasileira da criatividade por reunir, na capital sergipana, grandes especialistas em criatividade, processo criativo e inovação, tanto do Brasil como do exterior.
Alguns anos depois, fui convidado pela diretora da Faculdade São Luís de França a ministrar a palestra “Criatividade: ferramenta para obtenção de diferencial competitivo” na semana acadêmica aberta aos estudantes e professores de todos os cursos oferecidos pela instituição. A palestra foi tão bem avaliada que, na mesma hora, fui convidado para participar da edição do ano seguinte da semana acadêmica.
O tempo passou e, alguns dias antes da semana acadêmica do ano seguinte, recebi dos organizadores a programação do evento. Qual não foi minha surpresa quando vi que eu seria o principal palestrante da noite de abertura da semana acadêmica que, naquele ano, focalizaria o tema da inclusão.
Não sendo propriamente um especialista no assunto, perguntei aos organizadores que aspecto da inclusão deveria abordar: inclusão digital, inclusão profissional, inclusão escolar ou inclusão social? A resposta foi que ficava a meu critério, mas que a expectativa da direção da Faculdade era que a ênfase deveria recair na inclusão das pessoas com deficiência, cujo número vinha crescendo ano a ano entre os matriculados na instituição.
Diante dessa resposta, procurei me informar da melhor forma possível, não apenas por meio de fontes bibliográficas, mas também visitando instituições especializadas e entrevistando pessoas que entendiam do assunto. Com esse objetivo, estive, entre outros lugares, na Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD) e na Fundação Selma, onde fui muito bem atendido, tendo recebido informações que me foram imensamente úteis.
Confirmei, na ocasião, algumas ideias que já tinha em minha cabeça, referentes às precárias condições de acessibilidade observadas na esmagadora maioria das cidades brasileiras, às escassas oportunidades de emprego e ao preconceito. Soube também do autopreconceito, um fenômeno para mim até então desconhecido e de grande magnitude de acordo com os especialistas. Graças ao autopreconceito, que pode ser praticado pelos próprios deficientes ou por suas famílias, um volume considerável de pessoas com deficiência (PCD) permanecem escondidas em suas residências, totalmente à margem do convívio social.
Obtive também informações relevantes sobre acesso à educação, mercado de trabalho, potencial de consumo e todos os indicadores revelavam que a situação no Brasil era muito pior do que a encontrada em países desenvolvidos.
Aliás, um aspecto que me incomodava nas viagens ao exterior era o contraste gritante representado pelo grande número de pessoas com deficiência que eu via circulando nas ruas, parques restaurantes, museus e outras atrações em comparação com o Brasil.
Passada a palestra, continuei me interessando pelo assunto e constatei alguns avanços, graças, sobretudo, à ação de personalidades, como a senadora Mara Gabrilli e a ex-deputada Célia Leão, que não medem esforços para melhorar a acessibilidade e a inclusão. Como assessor da presidência da São Paulo Turismo, conheci um evento extraordinário, a Reatech – Feira Internacional de Tecnologias em Reabilitação, Inclusão e Acessibilidade, em que a pessoa com deficiência é o principal protagonista.
Mantive contato, ao longo desse período, com muitas pessoas que têm dado enorme contribuição para essas causas, atuando em áreas distintas como turismo, esporte, legislação, educação, jornalismo, formação profissional etc. Destaco, pedindo desde já desculpas pela omissão, os nomes de Jéssica Paula, Thais Altomar, Rita Petronilho, Selma Rodeguero, Sheila Melo, Carla Cléia e Elenice Rampazzo.
Acompanhei também o crescente aparecimento de pessoas com deficiência que se destacam em suas respectivas atividades como a atriz Tabata Contri, as palestrantes Andrea Schwarz e Tatiana Rolim, os apresentadores Fernando Fernandes, Flávia Cintra e Juliana Oliveira, a empresária Carolina Ignarra e a jornalista Ciça Cordeiro. Em termos de visibilidade, o sucesso de nossos representantes nas sucessivas edições das Paralimpíadas transformou em ídolos nacionais nomes como Daniel Dias, Clodoaldo Silva, André Brasil, Alan Fontelles, Carol Santiago e muitos outros.
Paralelamente a isso, testemunhei avanços na legislação, com a Lei de Cotas, e a criação de organismos governamentais nas esferas federal, estadual e municipal que, pelo menos em tese, favorecem progressos nas áreas de diversidade, acessibilidade e inclusão.
Apesar de tudo isso, a situação das pessoas com deficiência está ainda muito longe do desejável como mostra a matéria “Baixa oferta de vagas impede entrada de PCDs no mercado de trabalho”, publicada no jornal O Estado de S. Paulo (27 de maio de 2023, p. B 12).
A referida matéria informa que, segundo o IBGE, apenas 28,3% das pessoas com deficiência têm emprego, um percentual irrisório considerando o universo de 45 milhões de brasileiros que se reconhecem como uma pessoa com deficiência.
Entre as entrevistadas na matéria, algumas merecem ser reproduzidas por apontarem aspectos essenciais para a mudança da situação.
A professora Rosana Bastos, instrutora do programa PUC Inclusiva, afirma que “o mercado de trabalho é extremamente cruel com os trabalhadores com deficiência. As empresas adotam o discurso de que não há trabalhadores disponíveis, mas eles não têm oportunidade. A maioria das (vagas) que existem são para cargos ‘chão de fábrica’, no máximo auxiliar administrativo”.
Natália Mônaco, coordenadora de diversidade do Instituto Olga Kos de Inclusão, acredita que a explicação para isso tem relação direta com o preconceito, mas também com a visão histórica no Brasil, que por muitos anos atrelou a pessoa com deficiência a uma natureza incapacitante.
A opinião de Natália Mônaco, encontra respaldo na pesquisa conjunta da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH) Nacional, Isocial e Catho, que apontou que 65% dos gestores têm resistência em contratar PCDs.
Cristina Masiero, coordenadora de Psicologia da AACD, realça que este cenário é consequência não só de uma visão capacitista, que enxerga a deficiência como o próprio indivíduo, mas também das dificuldades de ampliar o acesso à educação formal para essa população. Segundo dados do IBGE, 67,6% dos brasileiros com deficiência não possuem instrução ou têm ensino fundamental incompleto.
Deixei para o final o depoimento de Anna Paula Feminella, secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos, para quem os dados reforçam uma “cultura de invisibilidade” implícita na sociedade. Ela defende que, para que a acessibilidade funcione, é preciso que ela seja tratada como compromisso institucional. Feminella conclui dizendo que “a sociedade enxerga a deficiência como uma falha, mas a falha está na sociedade”.
Portanto, na visão dos especialistas entrevistados na matéria, à qual me alinho integralmente, é necessária uma mudança cultural para a sociedade avançar em pautas envolvendo diversidade. Só assim será possível promover a independência das pessoas com deficiência, fator essencial para uma inclusão efetiva, que, de acordo com Natália Mônaco, só ocorrerá “por meio de políticas de emprego amplas, que estejam ligadas a outras áreas, como saúde, educação, transporte e moradia”.
Concluo com um alerta da influencer Deborah Pons Buselli: “a convivência entre pessoas consideradas diferentes torna o ambiente de trabalho mais produtivo e humano, pois permite a troca de experiências, cooperando para o crescimento profissional e pessoal”.
Referências e indicações bibliográficas
CAPIRAZI, Beatriz Bergamin A. Baixa oferta de vagas impede entrada de PCDs no mercado de trabalho. O Estado de S. Paulo, 27 de maio de 2023, p. B 12.
CARVALHO, Juliana. Na minha cadeira ou na tua. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010.
GABRILLI, Mara. Íntima desordem: os melhores textos da TPM. São Paulo: Saraiva: Varsar, 2009.
IGNARRA, Carolina; CINTRA, Flávia: ROLIM, Tatiana; (Convidadas Juliana Oliveira e Katya Hemelrijk). Maria de rodas: Delícias e desafios na maternidade de mulheres cadeirantes. São Paulo: Scortecci, 2012.
LACOMBE, Miriam. Mara Gabrilli: depois daquele dia. São Paulo: Benvirá, 2013.
MAGALHÃES, Thomaz. Quebra de script: uma incrível história de reinvenção pessoal. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
PAULA, Jéssica. Estamos aqui: Histórias das vítimas de conflito no leste africano. São Paulo: Instituto Estamos Aqui, 2018.
ROLIM, Tatiana. Meu andar sobre rodas. São Paulo: Scortecci, 2007.
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