Percepções opostas sobre a Argentina
“A lista de perrengues diários e dramas nacionais é grande, e a inflação, com certeza, é um dos mais complicados. […] A falta de confiança na moeda nacional fez com que, nas últimas décadas, milhares de pessoas passassem a guardar suas economias em moeda estrangeira, no exterior. Os argentinos em geral não confiam no peso e odeiam bancos.”
Janaína Figueiredo
Tendo por foco a Argentina, vivi duas experiências que me proporcionaram sensações diametralmente opostas. No mesmo dia em que concluí a leitura de ¿Qué pasa, Argentina?, livro de autoria da jornalista brasileira Janaína Figueiredo, que viveu em Buenos Aires por 30 anos como correspondente de O Globo, estive presente à palestra de Diana Mondino, ministra de Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto da Argentina, que assumiu o cargo juntamente com o presidente Javier Milei.
¿Que pasa Argentina? tem por subtítulo história, política, manias e paixões dos nossos hermanos e é um livro agradável. A leitura de seus nove capítulos, o primeiro dos quais escrito com a colaboração do embaixador Marcos Azambuja, profundo conhecedor da realidade daquele país e que costuma dizer que “existem três tipos de países no mundo: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos e a Argentina”, permite conhecer razoavelmente a história da Argentina, bem como aspectos peculiares do país e de seu povo, entre os quais: a adoração doentia pelo futebol, com destaque para Diego Maradona e Lionel Messi; a paixão nacional pelo divã que faz com que a Argentina tenha uma das maiores taxas mundiais de frequentadores de psicólogos e psicanalistas; e a alta qualidade do cinema, com referências especiais aos filmes A história oficial e O segredo dos seus olhos (ganhadores do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1986 e 2009 respectivamente), e Argentina, 1985, que conta a história dos promotores que levaram os líderes da ditadura militar argentina a julgamento e que ganhou o Prêmio Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira de 2023, bem como aos atores Ricardo Darín, Norma Aleandro e Héctor Alterio.
Três coisas, no entanto, chamam realmente a atenção: 1ª) a trajetória descendente da economia argentina, que de um dos países mais desenvolvidos do mundo no começo do século XX transformou-se num país marcado por crises sucessivas e pobreza crescente; 2ª) a extraordinária força das várias facções do peronismo no cenário político argentino; e 3ª) o contraste representado pelo sufoco de lá viver para os argentinos, obrigados a enfrentar perrengues diários, e as facilidades e os confortos experimentados pelos estrangeiros.
A autora, que concluiu a redação do livro em 2023, antes, portanto, do início do governo de Javier Milei, passa aos leitores a percepção de um país dominado pela desesperança e pela descrença nas instituições, saudoso da exuberância de um passado cada dia mais distante.
A palestra da ministra Diana Mondino, realizada na FIESP no dia 16 de abril, passou aos presentes uma sensação bastante diferente. Seu pronunciamento foi realista, reconhecendo as enormes dificuldades herdadas pelo governo Milei, mas num tom carregado de otimismo quanto ao futuro, resultante de uma postura corajosa de rever práticas caracterizadas pela corrupção, favorecimentos e enorme regulamentação dos governos passados, em especial no do presidente Alberto Fernández e sua vice-presidente Cristina Kirchner. A ministra enfatizou a eliminação das numerosas restrições à produção e ao comércio vigentes no passado e os esforços para reduzir os gastos públicos e reduzir a inflação, fatores fundamentais para o sucesso da política econômica de Javier Milei no longo prazo.
A percepção dos presentes foi a de que o radar do governo argentino agora está voltado para o futuro. Porém, para que esse futuro se concretize, permitindo a recuperação da economia, da política, da qualidade de vida e, principalmente, da confiança dos argentinos, será preciso muito trabalho, esforço e coragem para enfrentar os desafios e a resistência de parcela da sociedade, em especial dos que sentem ameaçados os privilégios acumulados nas últimas décadas.
A ministra, que é economista e teve sua competência comprovada em bem-sucedidas experiências atuando no setor privado, causou impressão favorável na plateia, constituída por dirigentes empresariais, jornalistas e acadêmicos.
Resta aguardar para ver se os argentinos poderão voltar a ter orgulho de seu país – e não apenas das conquistas de suas seleções esportivas – ou se retornarão ao passado recente de dificuldades e crises sucessivas.
Referências e indicações bibliográficas e webgráficas
AGUINIS, Marcos. O atroz encanto de ser argentino. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino e Terezinha Martino. São Paulo: Editora Bei, 2002.
_______________ ¡Pobre patria mía!: Panfleto. 9ª ed. Buenos Aires: Sudameris, 2009.
FIGUEIREDO, Janaína. ¿Que pasa Argentina?: história, política, manias e paixões dos nossos hermanos. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2023.
MACHADO, Luiz Alberto. A aposta dos argentinos. Disponível em https://www.souzaaranhamachado.com.br/2023/11/aposta-dos-argentinos/.
Referências cinematográficas
A história oficial
Direção: Luiz Puenzo
Roteiro: Aida Bortnik, Luis Puenzo
Fotografia: Felix Monti
Montagem: Juan Carlos Macias
Música: Atilio Stampone, Maria Elena Walsh
Elenco: Héctor Alterio. Norma Aleandro, Chela Ruiz
Ano de produção: 1985.
O segredo dos seus olhos
Direção: Juan José Campanella
Roteiro: Eduardo Sacheri, Juan José Campanella
Elenco: Ricardo Darín, Soledad Villamil, Pablo Rago
Ano de produção: 2008.
Argentina, 1985
Direção: Santiago Mitre
Roteiro: Mariano Llinás, Santiago Mitre
Música: Pedro Osuna
Elenco: Ricardo Darín, Peter Lanzani, Claudio da Passano, Alejandra Flechner, Brian Sichel, Norman Briski
Ano de produção: 202
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