O ouvidor do Brasil

 Um gênio nas letras de um imortal

“Viver no exterior é bom, mas é uma merda. Viver no Brasil é uma merda, mas é bom.”

Tom Jobin

O ouvidor do Brasil é o título do mais recente livro escrito por Ruy Castro, eleito em 2022 para a cadeira 13 da Academia Brasileira de Letras, tornando-se, portanto, um imortal. O subtítulo da obra é 99 vezes Tom Jobim. Sendo assim, não se trata de uma biografia, gênero que tem em Ruy Castro provavelmente seu maior expoente, mas o conjunto de 99 crônicas publicadas originalmente entre 2007 e 2023 na página 2 da Folha de S. Paulo, noventa das quais atualizadas, reescritas, dispostas em ordem mais temática do que cronológica e acrescidas de nove feitas exclusivamente para o livro.

Todos os textos, de leitura fácil e agradável como costumam ser os textos de Ruy Castro, tratam de Tom Jobim, o homem e o artista, e do mundo que girou tendo-o como centro. Em alguns, a presença de Tom poderá parecer de passagem. Mas não é assim − tudo no livro só aconteceu ou está nele publicado porque um dia ele existiu.

Dividido em quatro partes − O ouvidor do Brasil, com 25 crônicas; As boas histórias, com 23 crônicas; Anos dourados, com 27 crônicas; e Vou te contar, com 24 crônicas − o livro dá ao leitor uma visão panorâmica de um gênio que foi seguramente um dos maiores responsáveis pela projeção do nome do Brasil no cenário da cultura mundial.

Aliás, um dos aspectos que primeiro chama a atenção do leitor, seja ou não previamente admirador e conhecedor da obra de Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, é justamente a paixão que ele tinha pelo país que ostentava em seu próprio nome. Nascido no Rio de Janeiro em 25 de janeiro de 1927 e falecido em Nova York em 8 de dezembro de 1994, Tom foi um cidadão do mundo, vivendo e se apresentando em diversos lugares, sem jamais perder a noção de qual era sua verdadeira casa, o Rio de Janeiro, onde alguns locais específicos mereciam especial adoração, entre os quais Ipanema e o Jardim Botânico.

Apesar dessa paixão pelo Brasil, Tom Jobim reconhecia a complexidade dos problemas aqui existentes, a ponto de sua afirmação “o Brasil não é para principiantes” ser frequentemente utilizada − não raras vezes como epígrafe − em publicações referentes ao País.

Com tamanho amor pelo Brasil, é natural que ficasse amargurado com tantos exemplos, presentes até os dias de hoje, de conterrâneos que vivem se queixando e criticando o País sempre que surge alguma oportunidade. Isso fica muito claro na crônica Em permanente estado de assembleia (pp. 19-20), assim concluída:

Tom não se queixava do Brasil. “É o único país do mundo com nome de árvore. E não tem mais essa árvore.” Queixava-se do brasileiro , “que acorda todo dia para destruir o Brasil.” E por ter tão pouca autoestima: “O Japão é um país paupérrimo, com vocação para a riqueza. Nós somos um país riquíssimo, com vocação para a pobreza.” E ele se dizia tudo, menos saudosista: “De que adianta eu sentir saudade do Brasil se ninguém mais sente?”.

Sem saber, sem querer e sem poder evitar, Tom era um homem em permanente estado de assembleia com o Brasil.

Ainda na primeira parte, Ruy Castro destaca a estreita relação de Tom Jobim com a natureza, explícita na crônica Recado em prosa (pp. 27-28), na qual se lê: “O homem começou a derrubar as árvores assim que desceu delas”. Poucas linhas abaixo, afirma: “Toda a minha obra é inspirada na Mata Atlântica”, nos 5% ou 7% que sobraram dela, acrescentava.

O amor pela natureza e a preocupação com o descaso com sua preservação fazem de Tom Jobim um precursor daqueles que apenas décadas depois passaram a reconhecer a relevância de temas como ecologia, meio ambiente, aquecimento global e mudanças climáticas.

Em diversas crônicas aparecem os nomes de músicas que se tornaram mundialmente famosas, como Garota de Ipanema, Wave, Chega de saudade, Teresa da praia, Dindi, Desafinado, Samba de uma nota só, Insensatez, Retrato em branco e preto, Sabiá, Águas de março, muitas delas produto de sua parceria com outros nomes que projetaram a Bossa Nova no final da década de 1950, tais como João Gilberto, Vinicius de Moraes e Newton Mendonça.

Aparecem com destaque também nomes de famosos intérpretes das canções criadas por Tom, a começar por  Frank Sinatra, Stan Getz e Astrud Gilberto nos Estados Unidos, passando por Elis Regina, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Sylvia Telles, Johnny Alf, Dick Farney, Baden Powell e tantos outros.

A boemia carioca da época, em que o Brasil se afirmava no cenário internacional graças à música e ao futebol, superando  o complexo de vira-lata, também é lembrada em diversos momentos, quer pelos artistas que se apresentavam nos bares e nas boates do Rio de Janeiro, quer, sobretudo, pela turma que se encontrava no apartamento de Nara Leão, na Avenida Atlântica, em Copacabana, entre os quais Roberto Menescal, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Luiz Eça, Luiz Carlos Miele e Billy Blanco.

Por todas essas razões, e muitas outras que não cabem num artigo desta natureza, sugiro vigorosamente a leitura de O ouvidor do Brasil, que inicia com a seguinte definição (p. 11):

Ouvidor. S. m. Do latim auditor, –oris; auditor, ouvinte. Aquele que ouve. Atento aos valores ambientais, urbanos, vegetais, animais, humanos e culturais, e de prontidão para defendê-los. Que ouve os sons do país, venham da floresta ou da cidade. Exemplo: Antonio Carlos Jobim.

 

Referências

CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a História e as Histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

_______________ A onda que se ergueu no mar: novos mergulhos na Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_______________ O ouvidor do Brasil: 99 vezes Tom Jobim. São Paulo: Companhias das Letras, 2024.